Zumbi dos Palmares é, no Brasil, a referência mais marcante da luta abolicionista e de resistência ao colonialismo trazido para terras tupiniquins pelos europeus. O Dia da Consciência Negra, celebrado nesta semana, marca exatamente a data em que Zumbi foi assassinado. Emboscado por bandeirantes, o líder foi decapitado e exposto em praça pública, para que outros não seguissem seu exemplo.
Mártir, Zumbi ganhou lugar de destaque na história: tornou-se ícone de resistência e de luta por ideais de liberdade.
Mas o educador Paulo Cruz, professor de filosofia e sociologia, mestre em ciência da religião e cavaleiro da Ordem do Mérito Cultural, enxerga o símbolo de modo diferente. “Zumbi é importante, mas num contexto muito específico. Houve grandes abolicionistas, grandes intelectuais negros, grandes líderes – mesmo durante a vigência da escravidão – que estão de lado na história por não gerarem tanta mobilização quanto Zumbi”, argumenta.
Para Paulo Cruz, figuras negras históricas como os irmãos André e Antonio Rebouças, em especial André, o mais velho, representam de maneira muito mais clara o potencial e a capacidade dos negros em superar adversidades, vencer obstáculos sociais e inspirar pessoas como modelos de virtude. “Esses são negros que viveram nos períodos mais adversos da história e que tiveram um destaque incomum, inconcebível para a época. Eles decidiram impor suas ideias, estudar, se destacar. Quando olho para essas figuras, não vejo exceções. Vejo modelos para o resgate da dignidade da população negra”, enfatiza o professor.
Paulo Cruz foi um dos convidados pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos para o seminário História, Percursos e Perspectivas, que ocorreu na quarta-feira (20) e reuniu influenciadores negros para contar vivências sobre racismo, trabalho, consciência social e história do Brasil.
“A história que não me contaram”
Filhos de um rábula – um advogado que não possuía diploma, mas era autorizado a praticar a profissão -, a história dos irmãos Rebouças é repleta de realizações que marcaram a história do Brasil e que, ainda à sua época, eram consideradas grandes feitos. O pai, Antonio Pereira Rebouças, ativista dos direitos civis dos negros no século 19, foi um ávido combatente da independência brasileira e atuou como conselheiro pessoal de Dom Pedro II.
André Rebouças e seu irmão, Antonio, são considerados os primeiros negros brasileiros a cursar uma universidade. Nascidos em 1838 e 1839, respectivamente, estudaram engenharia na Europa. Baianos da cidade de Cachoeira, ambos voltaram ao Brasil graduados e iniciaram uma série de obras que, ainda hoje, fazem parte do cenário urbano das maiores capitais brasileiras. Os irmãos projetaram a ferrovia Paranaguá-Curitiba, considerada a maior obra da engenharia férrea nacional até então. Juntos, planejaram um sistema de distribuição de água que ajudou os cariocas durante a seca de 1870. André projetou as docas da Alfândega da baía de Guanabara e as docas D. Pedro II, hoje pontos históricos da capital fluminense.
O túnel Rebouças, estrutura rodoviária responsável pela conexão das zonas Norte e Sul da cidade do Rio de Janeiro, é uma das várias homenagens aos irmãos engenheiros.
E não é apenas o professor Cruz, entusiasta de figuras históricas, que reconhece André Rebouças como herói nacional. Joaquim Nabuco, influente escritor, primeiro diplomata brasileiro nos Estados Unidos e ferrenho defensor da abolição da escravatura, valorizou a grandeza do amigo em sua escrita.
Empreendedorismo negro
Paulo Cruz vai além dos feitos de engenharia dos Rebouças. Apesar de nomear dezenas de exemplos de figuras históricas que poderiam ser homenageadas no Dia da Consciência Negra, o filósofo trata Francisco de Paula Brito, o primeiro editor brasileiro, como maior representante da intelectualidade negra do século XIX.
Autodidata, Francisco era filho de escravos. Aprendeu a ler com a irmã e foi muito influenciado pelo avô, Martinho Pereira de Brito, que era discípulo de Mestre Valentim – renomado escultor da região de Ouro Preto (MG).
Francisco trabalhou como aprendiz de tipógrafo durante 3 anos, quando conseguiu economizar o suficiente para comprar seu primeiro prelo (impressora rudimentar que produzia cópias de uma chapa-mestra). Com a aquisição, o rapaz se tornaria dono de sua própria editora, e ficou conhecido como Paula Brito.
Impulsionado pelo sucesso de publicações voltadas ao público feminino, Paula Brito obteve sucesso comercial, e logo passaria a investir em outras pessoas. Foi dono do primeiro jornal abolicionista e antiescravagista da história: O Mulato. Até Dom Pedro II se tornou parceiro comercial de Paula Brito, tendo comprado ações de seus empreendimentos.
Entre as obras publicadas pelo editor, um rapaz de 14 anos chamava a atenção. Contratado como ajudante na editora, o jovem Machado de Assis se mostrava poeta por excelência. O resultado da parceria todos conhecem. O que poucos sabem é que Paula Brito foi responsável pela publicação do primeiro romance brasileiro. E o autor, romancista pioneiro, também era negro.
Paula Brito morreu em 1861. O cortejo funerário foi composto por mais de 200 carros – artigo de luxo na época -. Paula Brito foi enterrado como herói, símbolo intelectual e influente pensador da sociedade brasileira.
Reflexo na sociedade
Para o professor, reconhecer-se como negro, digno, e capaz de realizar todo o potencial só é possível com a presença de figuras que inspiram os mesmos valores, e que são mais próximas dos jovens da periferia. “Fico muito triste ao perceber que alunos negros, ao serem questionados, não tem referências maiores na realidade atual do povo brasileiro. Quando o jovem olha para a sociedade e só vê crime, revolta, estatísticas ruins, ele não é inspirado”, pondera.
Fonte EBC