Mesmo antes da indicação de um ministro “terrivelmente evangélico” para o Supremo Tribunal Federal (STF), como prometeu ano passado o presidente Jair Bolsonaro, setores ligados aos religiosos têm reforçado sua atuação na Corte com o objetivo de garantir que seus interesses sejam defendidos, sobretudo em temas da chamada “pauta de costumes”.
Fundada em 2012 e composta por cerca de 700 membros, a Associação Nacional dos Juristas Evangélicos (Anajure) já entrou no STF com pedidos para acompanhar ao menos 29 ações na condição de “amigo da Corte” (“amicus curiae”, no jargão jurídico). Isso permite a seus advogados apresentar informações complementares e fazerem manifestações sobre os temas que estão em análise.
A entidade monitora de perto ações que discutem descriminalização do aborto, política de ensino sobre “ideologia de gênero” e “orientação sexual” em escolas, e a distribuição de exemplares da Bíblia em bibliotecas. As solicitações para atuar nos processos geralmente são aceitas pelos relatores de cada caso.
“Nossa agenda não é anti-abortista ou anti-LGBT. Somos um segmento evangélico que não quer impor valores, mas sim ter os seus valores da vida, da família e dos direitos humanos respeitados, e não desconstruídos como muitos tentam”, diz o advogado Uziel Santana, presidente da Anajure.
No ano passado, a associação atuou durante o julgamento sobre a homofobia. Havia pressão da frente parlamentar evangélica, que se opunha ao julgamento por temer que o Supremo colocasse limites ao discurso de pastores que condenam a homossexualidade. Os ministros acabaram enquadrando a homofobia e a transfobia como racismo, mas estabeleceram que a repressão contra essas condutas não restringe o exercício de liberdade religiosa, como defendia a Anajure. Ou seja: líderes religiosos podem pregar suas convicções desde que elas não virem discurso de ódio.
Em agosto de 2018, o grupo participou da audiência pública convocada para discutir a descriminalização do aborto, defendendo a tese de que a medida “não é unicamente saúde pública” e “envolve princípios e direitos fundamentais”. O tema ainda não foi levado ao plenário.
O grupo quer ser visto como “conservadores equilibrados”, de acordo com Santana. “A gente pode, democraticamente, participar da esfera pública de qualquer área. Nunca nenhum gabinete deixou de nos atender”, diz o advogado.
Conexões
Nos bastidores do STF, o lobby evangélico é visto como mais incisivo que o de católicos. Isso porque a maioria dos ministros da Corte – inclusive o atual presidente do tribunal, Dias Toffoli, e sua antecessora, Cármen Lúcia – é católica e possui conexões com integrantes da Igreja, o que facilita acesso aos gabinetes, apontam interlocutores dos magistrados. No caso dos evangélicos, não haveria a mesma proximidade, pelo menos por enquanto.
Para o ministro Marco Aurélio Mello, entidades como a Anajure têm o direito de pedir para se manifestar nos processos, mas ele observa que o Estado não está submetido à vontade de segmentos religiosos. “Nós atuamos segundo a Constituição, e desvinculados de qualquer religião, embora haja um crucifixo no plenário. O Judiciário é laico, e evidentemente isso (a religião) não tem qualquer peso para nós”, afirma Marco Aurélio, que se considera um “católico não praticante”.
Em 2004, o ministro provocou polêmica ao negar pedido da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) de ser incluída como “amigo da Corte” no caso que discutia o aborto de fetos anencéfalos. “O relator poderá admitir terceiros, mas tem de haver pertinência temática. Tem de averiguar caso a caso”, afirma.
Em novembro, com a aposentadoria compulsória de Celso de Mello, Bolsonaro poderá fazer a sua primeira indicação para a Corte. Entre setores evangélicos, que representam 30% da população brasileira, há a expectativa que alguém ligado à religião seja indicado. “A Anajure representa o preparo do segmento evangélico, exercendo a atividade de representar o nosso pensamento no sistema judiciário”, afirmou o líder da bancada evangélica, deputado Silas Câmara (Republicanos-AM).
Discussões
Segundo o professor de direito da Unifesp Renan Quinalha, os evangélicos se organizaram inicialmente com foco no Congresso. Agora, voltam suas atenções para o STF, que se tornou epicentro das discussões políticas nacionais. “É um grupo que busca alianças, articula seus interesses e tem uma estratégia muito clara.”
O diretor-presidente do Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero, Paulo Iotti, por sua vez, diz acreditar que “faz parte da democracia” as movimentações de grupos de interesse no STF. “O Supremo não pode decidir com base na religião, mas, nesse contexto, é legítimo que as entidades religiosas façam isso (pressão em julgamentos), da mesmíssima forma que nós fazemos pelo movimento LGBTI+. que movimentos sociais fazem.”
Fonte: Estadão