O principal personagem da equipe ucraniana que está em São Paulo para um intercâmbio de duas semanas com a equipe nacional de vôlei sentado vem do banco de reservas: Fernando Guimarães. Não é só o sobrenome; o tipo físico e o comportamento à beira da quadra comprovam que ele é mesmo o irmão mais novo do José Roberto Guimarães, técnico tricampeão olímpico. Mas, ele também tem muita história no esporte. Só na seleção masculina da modalidade, foram mais de cinco anos como técnico. Em entrevista realizada no Centro de Treinamento Paralímpico, ele falou sobre esses e outros assuntos.
Agência Brasil – Como foi o contato com os ucranianos?
Fernando Guimarães – É um orgulho e um prazer ter sido lembrado. É reflexo do trabalho. Eu fiquei cinco anos como treinador da seleção masculina (entre os anos de 2010 e 2016, foram dois títulos parapanamericanos, o vice-campeonato mundial em 2014 e da Copa do Mundo em 2016, o quinto lugar na Paralimpíada de Londres e o quarto lugar nos Jogos do Rio de Janeiro).
Quando eu assumi a seleção, o Brasil nunca havia vencido a Ucrânia. E, aos poucos, começamos a vencê-los. Nesse tempo todo, eu sempre os encontrava em diversas competições. E, depois da Paralimpíada do Rio de Janeiro, quando eu saí da seleção, recebi alguns convites de outras equipes. E a ucrânia foi uma delas. Inclusive, um dos ucranianos veio jogar no time que eu comandava. Foi muito complicada a comunicação. Apesar de termos uma tradutora, as diferenças das línguas complicaram demais. Sem falar do estilo de jogo, que é totalmente diferente. Naquela época, essas questões acabaram “esfriando” a negociação. Mas agora, há pouco mais de um mês, eles me ligaram dizendo que iriam passar duas semanas aqui em São Paulo. E eu aceitei de pronto acompanhá-los. Mas é bem difícil. Eles não estão acostumados a treinar, a estudar. Eles jogam, entram na quadra e jogam. Jogam por jogar. Existe um potencial muito grande.
Agência brasil – Ainda correndo atrás da vaga para os Jogos Paralímpicos de Tóquio, a Ucrânia vai disputar o pré-olímpico mundial nos Estados Unidos no mês que vem. A competição acontecerá entre os dias 16 e 21 de março em Oklahoma nos Estados Unidos. Além dos anfitriões e dos ucranianos, a Croácia, o Canadá, a Alemanha, o Cazaquistão e a Letônia estarão na disputa pela última vaga. Como está a conversa dentro do grupo?
Guimarães – Eles me passaram que “ganhando, tudo bem. E perdendo, também tudo bem”. Eu não consigo ver neles algo que existe na seleção brasileira: aquela determinação. Perguntei se eles estavam vendo a vontade dos brasileiros durante os treinos. Não precisa ser tão sanguíneo quanto os brasileiros. Mas, se eles continuarem nesse ritmo e nessa pegada, acho muito difícil. Eles até são um dos favoritos. Acredito que a final vai ser Ucrânia e Alemanha, que retornou com a equipe completa. Eles precisam entender o jogo, querer mais, colocar o coração na quadra. Falei para todos: “é uma vaga olímpica. Vocês precisam querer mais do que a vida. Todo mundo quer participar de uma Olimpíada”.
Agência Brasil – E você vai encarar esse desafio como treinador deles?
Guimarães – Tem esse desafio da língua. Aqui em São Paulo, eu comecei a falar primeiro com o capitão. E ele fala muito pouco de inglês. Fiquei com a impressão de que eu iria apenas treiná-los aqui no CT, nem iria participar dos amistosos contra o Brasil. Mas eles falaram que eu precisava estar presente nas partidas. Eles sempre me falam que precisam de mim. Acho que pode acontecer uma conversa. Mas gostaria que eles me dessem carta branca. Só que teria que ser uma liderança por agregação, não por imposição. Por conta da minha trajetória, gostaria que eles me escutassem. Precisam “baixar a guarda” e reconhecer que eu posso ajudá-los. Eu gosto muito de jogo. Não importa contra quem, eu gosto de ganhar, odeio perder. Pode ser. Tomara que dê certo.
Agência Brasil – Do início de 2019 até os jogos Parapan-americanos de Lima, você foi o assistente técnico do José Guedes na seleção brasileira feminina. A equipe conquistou a prata e a vaga para a Paralimpíada de Tóquio. Mas você deixou o cargo. Por quê?
Guimarães – Foi a primeira vez que a equipe ganhou um set dos Estados Unidos. O Guedes deixou que eu colocasse em quadra muita coisa daquilo que eu acredito. As meninas entenderam que eu queria uma postura diferente, uma velocidade de jogo muito maior. Mas eu falei com o Guedes e com o Ângelo (Ângelo Alves – presidente da Confederação Brasileira de Voleibol para Deficientes) que ser assistente não é do meu perfil. Para você ter uma ideia, eu fui assistente do meu irmão e durou apenas três jogos.
Agência Brasil – Passados quatro anos desde que você deixou a seleção masculina de vôlei sentado, qual a avaliação que você faz daquele período?
Guimarães – Eu peguei a seleção na 15ª posição do ranking e fomos crescendo, crescendo. Hoje o time está em segundo lugar. A gente conseguiu se impor e alcançamos boas vitórias. Fomos medalha de prata no mundial de 2014, vice na Copa do Mundo de 2016 e bi em Parapan-americanos. De 2013 até 2016, não ficamos fora de nenhum pódio e disputamos todas as finais. Mas faltou a “cereja do bolo” a medalha paralímpica. Eu tinha certeza que a gente ia fazer a final contra o Irã no Rio de Janeiro. Os meninos não tiveram culpa nenhuma. Eu fui o grande responsável pelo resultado (na semifinal, o Brasil perdeu para o Irã por 3 sets a 0 e, na disputa da medalha de bronze, foi derrotado pelo Egito por 3 sets a 2). Sempre jogávamos fora de casa e eu não precisava ter aquela preocupação com a namorada de um, a mãe de outro… Enfim, com os familiares. No Rio de Janeiro estávamos em casa. Eram mais de 10 mil pessoas por jogo no ginásio. No primeiro jogo, contra os Estados Unidos, quando ganhamos por 3 sets a 0, o meu assistente disse que tínhamos ido bem. Mas eu já estava sentindo que algo estava errado. Aquele resultado ainda está “engasgado”. Não tem um dia que eu não pense nisso. Por isso, eu quero voltar um dia para a seleção. Mas tudo ao seu tempo e no seu tempo. O Célio está fazendo um trabalho excelente (Célio César Mediato, atual técnico da seleção brasileira masculina). Ainda gostaria muito de ter uma outra oportunidade. Mas eu acredito que a seleção chega muito forte em Tóquio. Os meninos estão super maduros. Temos tudo para ganhar a medalha que não veio no Rio de Janeiro.
Agência Brasil – Como é o seu relacionamento com o José Roberto? Recentemente ele foi suspenso por três jogos depois de uma polêmica em uma partida da Copa Brasil (o Praia Clube acabou vencendo por 3 sets a 1 quando Zé Roberto, irritado por possíveis erros da arbitragem, retirou o time de quadra no quarto set com o placar empatado em 27). Vocês conversaram sobre isso?
Guimarães – Falei que ele só tinha recebido três jogos porque é o Zé Roberto. Se fosse eu, teria sido banido do vôlei. Eu achei que um erro não justifica o outro. Mas a arbitragem realmente está muito mal no vôlei brasileiro. Algo precisa ser revisto. Tem muito dinheiro rolando. De repente, você perde um jogo e uma classificação por um erro do árbitro, como foi o caso do Zé Roberto naquele dia. Daí como vai explicar para o patrocinador, que investiu R$ 5 ou até mesmo R$10 milhões na temporada? Como fica? Mas, enfim! O meu relacionamento com o Zé Roberto é muito bom. Estamos juntos quase todo final de semana. Andamos de cavalo juntos. Eu falo pouco de vôlei com ele porque a gente sempre briga quando começamos a falar sobre isso.
Agência Brasil – Estamos em um ano olímpico e, quando fala sobre a seleção brasileira, o seu irmão sempre se queixa que durante todo esse ciclo ele praticamente não conseguiu colocar em quadra ao mesmo tempo o trio Tandara, Natália e Gabi. Você considera que, se ele conseguir reunir esse grupo todo em plenas condições físicas, o Brasil pode brigar por uma medalha?
Guimarães – Eu acho que com todas no melhor condicionamento físico a gente briga de igual para igual com qualquer equipe. Agora, eu sempre digo para ele, infelizmente, o grupo brasileiro nunca esteve completo nesse período, e todos os principais adversários estiveram quase sempre 100%. Isso pode fazer muita diferença. Estamos três anos atrás das demais equipes em relação a preparação. Ele precisa ver se terá tempo para colocar essa equipe brasileira, que na teoria é muito forte, em condições de jogar e competir lá em Tóquio. Hoje você tem Sérvia e China em um patamar bem acima das demais. China ainda é espetacular. Mas a Rússia está vindo bem. A Itália é forte. Os Estados Unidos costumam oscilar um pouco nos Jogos Olímpicos, tanto que não venceram nenhum ainda, mas é um time fortíssimo. Só que o Zé tem um “negócio legal” com as Olimpíadas. Por isso eu confio muito nele. Mas, tem muitas variáveis nessa equação.
Agência Brasil – Como foi a reação do seu irmão depois daquela derrota para a China nas oitavas de final dos Jogos do Rio de Janeiro (a queda por 3 sets a 2 deixou o Brasil sem medalha e representou a pior campanha brasileira em Olimpíadas desde 1988)?
Guimarães – É tão complicado. Porque nas Olimpíadas tudo precisa conspirar a favor. Em Atenas, teve aquela derrota traumática para a Rússia (na semifinal, o Brasil perdeu vários match points e caiu para a Rússia por 3 sets a 2. Depois, na disputa do bronze, foi superado também por Cuba por 3 sets a 1 e acabou em quarto lugar). Todo mundo falou “um monte” e eu sei que ele passou quatro anos sem dormir pensando naquilo. E, em 2008, veio o ouro. Já, em 2012, o Brasil passou da primeira fase em quarto. Mas, se a Turquia tivesse vencido os Estados Unidos, o Brasil estaria fora ainda na fase inicial. Depois pegamos a Rússia (primeira da outra chave), passamos e ficamos com o ouro. Então, falar depois é fácil. O cara fica dizendo isso e aquilo. Mas gostaria que as pessoas fossem lá no treino para tentar entender um pouco mais porque certas coisas acontecem. Acredito que assim as pessoas poderiam saber mais sobre as dificuldades que as pessoas passam nos momentos decisivos. Mas, naquele dia do jogo contra a China, eu fui dormir quando o Brasil estava ganhando por 1 set a 0 porque a jogo estava muito fácil. Acordei no final do jogo vendo o meu sobrinho-neto indo lá abraçá-lo e não acreditei no placar de 3 sets a 2 para a China. A gente não consegue conviver com a derrota. O ganhar para gente, para mim, para ele, acredito que para o Bernardinho também, é obrigação. Quando eu perco, fico maluco. Mesmo que o meu time seja inferior, eu fico procurando soluções ou algo que eu poderia ter feito para vencer a partida. Ele age exatamente da mesma forma. Mas, nada como um dia após o outro. Daqui a pouco temos mais uma chance. Talvez venha mais uma medalha.
Agência Brasil – Ele já está com 65 anos. Você acredita que, independentemente do resultado, essa será a última olimpíada dele?
Guimarães – Logo depois de Londres, eu perguntei para ele: “você é bicampeão olímpico. Por que continuar? Você sabe que, se perder, será muito cobrado”. E a resposta foi tão simples e bonita: “vou seguir porque eu gosto muito disso. Eu preciso…” mas, agora, eu acho que, depois da chegada dos netos, ele vai parar. Claro que são dois exemplos de caras super vitoriosos, mas o Zé Roberto e o Bernardinho acabaram “matando” quatro gerações de técnicos brasileiros. Só os dois ficam na seleção. É importante uma renovação. Por exemplo, você vê que o Renan Dal Zotto pegou a seleção depois de uma era brilhante do Bernardo e está se saindo super bem. Acho que vai acontecer a mesma coisa com o Zé Roberto. Tá na hora de descansar.
Edição: Verônica Dalcanal
Fonte : EBC.com.br