“O crime organizado vai encontrar um jeito de se adaptar a essa nova realidade, porque essa é a natureza da atividade”, disse ao Estado o professor Leandro Piquet Carneiro, coordenador do programa de pesquisa em segurança e criminalidade da Universidade de São Paulo (USP). “Mas vai sofrer (o impacto) como todo mundo.”
Com mais de 1 milhão de infectados e metade da humanidade em quarentena, o narcotráfico foi um dos primeiros negócios afetados. No início da pandemia, a medida mais comum adotada por todos os governos, além da quarentena, foi a suspensão de viagens e o fechamento de fronteiras.
“Agora, os carregamentos estão mais fáceis de serem monitorados. Não há carros nas ruas, aviões não decolam e navios não zarpam. Qualquer movimento suspeito é detectado facilmente”, afirmou Frédéric Massé, um dos diretores da Red Coral, que monitora o crime na América Latina.
Outro problema é o papel da China na cadeia de suprimentos de muitas organizações criminosas, especialmente na América Latina. Os chineses fornecem de tudo, desde bugigangas e produtos falsificados até precursores químicos para a fabricação de drogas. Com a pandemia, as fábricas foram fechadas, cortando remessas e criando um gargalo na cadeia produtiva.
A gangue Unión Tepito, que controla a venda de produtos falsificados na Cidade do México, não consegue mais viajar à China para acertar a compra de mercadorias em razão das restrições de viagens. Em fevereiro, a MVS Noticias, rádio da região metropolitana da capital mexicana, relatou que camelôs e comerciantes já não estão pagando mais extorsões ao grupo.
Já o problema do cartel Jalisco Nueva Generación é a falta de precursores químicos para fabricar o fentanil, opioide que faz sucesso nos EUA. Há relatos de funcionários do Ministério da Justiça do México de que a produção foi paralisada desde que a China cortou as exportações.
O isolamento social também tem sido um desastre para gangues especializadas em assaltos, furtos e roubos. Nos EUA, na semana entre 15 e 21 de março, houve queda de 42% dos crimes em San Francisco, 24% em Nova York, 22% em Detroit, 19% em Los Angeles e 13% em Chicago. John MacDonald, criminologista da Universidade da Pensilvânia, diz que a razão é simples: as pessoas estão em casa. “Não há vítimas andando nas ruas”, disse MacDonald ao Marshall Project, grupo de jornalismo investigativo.
Em muitos lugares, ruas vazias significam prejuízos para ladrões de carro. Na semana passada, a Iniciativa Global da ONU contra o Crime Organizado Transnacional (GI-TOC) publicou o relatório Crime e Contágio, em que relata o caso da Bósnia, onde o roubo de veículos sempre foi um problema crônico. “Os bandidos estão reclamando que é mais difícil roubar carros quando as ruas estão vazias”, diz o texto. Pela mesma razão, a rede de informantes da GI-TOC registrou uma redução de homicídios e roubos na Sérvia e em Montenegro.
No Reino Unido, a desaceleração do crime chega a 20% em algumas regiões, segundo o jornal The Guardian. Andy Cooke, que preside o Conselho Nacional de Chefes de Polícia, espécie de sindicato de policiais britânicos, disse que o fechamento de bares e boates dizimou os pequenos delitos. “Há menos violência e brigas”, afirmou. Assaltos a lojas de conveniência, feitos por jovens para financiar algum vício, desapareceram. “Todos os estabelecimentos estão fechados”, disse.
Com as pessoas confinadas no sofá, os crimes contra propriedades despencaram, segundo Meagan Cahill, criminologista da Rand Corporation. “Assaltantes preferem casas vazias. É uma questão de oportunidade, que não existe mais na quarentena”, disse Cahill.
Mas, se o confinamento reduziu os delitos que exigem interação humana, aumentou a oportunidade para crimes que já eram cometidos à distância pela internet. Nos EUA, o FBI disse ter identificado duas categorias de fraudes online ligadas à covid-19.
“Uma é a solicitação de dinheiro para kits de teste e vacinas”, disse o agente Rich Jacobs, encarregado de crimes cibernéticos, à revista Forbes. “A outra são ataques tradicionais, envolvendo phishing e sites falsos, projetados para instalar malware ou para fazer com que as pessoas revelem senhas bancárias.”
Na semana passada, a Europol publicou um relatório intitulado Lucro na Pandemia, que alerta para a reciclagem de velhos golpes online usando o coronavírus, explorando a ansiedade e o fato de tanta gente estar trabalhando de casa ao mesmo tempo. “O crime organizado tem usado o medo e o fato de as pessoas estarem em casa, buscando informações o tempo todo”, afirmou Catherine de Bolle, diretora da Europol.
O texto também aponta a falsificação como um problema agravado pela epidemia. Os esquemas mais comuns, segundo a Europol, são a venda de testes fraudulentos de coronavírus, máscaras e remédios falsos, além de links que prometem a cura da doença.
Com as escolas fechadas e as crianças online por mais tempo, a Europol também observou um aumento de casos de pedofilia. “Recebemos informações de vários países do bloco de que há um crescimento da atividade de pedófilos, durante a pandemia, que procuram novos materiais de exploração na internet”, disse De Bolle.
Máfia italiana obtém lucro com oportunidades criadas pelo vírus
Desde o início da pandemia, os ciberataques têm sido comuns na Itália, um dos países mais infectados pelo coronavírus. Em meio à corrida pelo bônus de ¤ 600, que sobrecarregou o site do instituto italiano de previdência, hackers fizeram três assaltos em um dia, colocando o endereço fora de serviço. O instituto recebeu em um único dia 440 mil pedidos de pagamento para trabalhadores autônomos do bônus concedido pelo governo em razão da covid-19.
De acordo com o governo italiano, “os hackers não roubaram nada, apenas queriam testar o site e criar confusão”. Na França, hospitais, farmácias e asilos de idosos também passaram a ser vítimas de golpes. De acordo com o jornal Le Monde, os “bandidos se adaptaram rapidamente à covid-19”, mudando as fraudes que antes se davam durante a transferência de dinheiro para temas médicos.
O golpe é o mesmo. O bandido se passa por um fornecedor, que alega ter recebido máscaras de proteção ou frascos de álcool em gel, e incentiva a vítima – muitas vezes os próprios hospitais – a fazer o pedido antes que o estoque acabe. Em seguida, eles recebem os dados bancários e o dinheiro que, uma vez depositado, passa a circular em dezenas de contas no exterior.
Giuseppe Governale, chefe da Direção Investigativa Antimáfia (DIA), disse à France Presse que os mafiosos sabem transformar ameaças em oportunidades, principalmente quando o crime é agiotagem. “A crise pegou a máfia no contrapé. Mas ela está se adaptando”, afirmou.
Segundo Governale, a máfia pensa no longo prazo, quando a economia se recuperar. “Haverá muito dinheiro circulando”, disse O autor Roberto Saviano afirmou algo parecido em entrevista esta semana ao jornal La Repubblica. “Basta olhar para o portfólio das máfias, para ver quanto elas podem ganhar com essa pandemia”, disse.
“Minha preocupação é com a agiotagem”, afirmou Anna Sergi, criminologista da Universidade de Essex. “Em breve, teremos empresários angustiados, sem conseguir pagar funcionários. Por isso, será muito mais fácil conversar com um agiota.”
“Quando a economia está suspensa, o maior perigo é que as empresas em crise não consigam sair dela e as máfias comecem a pescar nesse aquário”, disse o procurador italiano Federico Cafiero de Raho.
Mas nem tudo é lucro em tempos de pandemia. A N’drangheta, máfia da Calábria, que movimenta drogas e contrabando em embarcações de carga, vem encontrando dificuldades para movimentar a mercadoria, segundo Sergi. “Embora as remessas tenham continuado, ninguém sabe o que vai acontecer quando os produtos chegarem à Itália”, disse. “Certos carregamentos estão a caminho, mas quem vai buscá-los?”