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Medo do vírus e da FOME

Em um sofá, a família se espreme para ver o jogo, na laje da casa na Favela do Metrô-Mangueira. A favela começou a ser removida há cerca de quatro anos (Tânia Rêgo/Agência Brasil)

Na cama que divide com três filhos, a dona de casa Luciana Santos Botelho, de 45 anos, tem passado as últimas noites em claro. Ela respira o ar abafado do quarto onde a família se aperta, pensa nas dívidas e na epidemia que se espalha no Jardim dos Francos, na zona norte paulistana, onde mora. Ali, embora os casos do novo coronavírus tenham se multiplicado, o comércio aos poucos volta à atividade, e o risco para a família Santos Botelho tem aumentado.

“O que me tira o sono é o aperto aqui, porque nós moramos em dois cômodos para muita gente, e não ter um lugar melhor para eles”, diz Luciana. São oito pessoas – a mãe, três moças e quatro meninos – para o barraco de 4 por 8 metros. Com o fim da merenda na escola das crianças, todos comem mal na casa. Ela só consegue comida no descarte de um supermercado e com a mãe, a faxineira Maria Raimunda, de 65 anos, que ainda usa o transporte público todos os dias para ir ao trabalho.

A quarentena não durou muito para moradores de alguns bairros da periferia. Nos arredores da Favela Gato Preto, onde mora Luciana, já é possível ver bares abertos, e filas de clientes dentro das barbearias, mesmo com metade do portão fechado. Aos poucos, as ruas que concentram o comércio da comunidade voltam a ter movimento. À noite, carros de som e lojas de bebida voltaram a fazer pequenas festas. “Na periferia, temos muitos estabelecimentos pequenos, e as pessoas dependem disso. Parte acabou reabrindo, com muitos preocupados em não conseguir manter o sustento da família”, diz o líder comunitário Henrique Deloste, que mora na Brasilândia. Ele disse que equipes da subprefeitura têm orientado os comerciantes a fechar, “mas sem trabalho e preocupados com as contas da família, muitos comerciantes acabaram reabrindo”.

O cenário é o mesmo nas duas maiores favelas da capital, Heliópolis e Paraisópolis. Moradores relatam um retorno gradual do movimento ao longo desta semana, após o fechamento de bares, restaurantes e comércios não essenciais ter sido decretado no Município. Durante o fim de semana anterior, houve carreatas pedindo a reabertura do comércio na cidade, e o presidente Jair Bolsonaro chegou a visitar comerciantes do Distrito Federal. “Está aumentando (o movimento) porque está faltando dinheiro”, diz Igor Amorim, membro da união dos moradores em Paraisópolis. “O presidente dizer que é uma ‘gripezinha’ traz problema, porque o povo quer sair mesmo. O movimento está muito alto, muito diferente da semana passada para cá.”

Casos

O novo coronavírus já atingiu esses bairros. Um dos casos é o da professora Michele Fernandes Teixeira, de 38 anos. Ela foi diagnosticada por meio de uma tomografia no pulmão, após ir a dois médicos com febre, dor no corpo e tosse. Moradora do Jardim dos Francos, ela hoje passa a maior parte do dia no quarto, onde deve permanecer por mais dez dias, mas divide o único banheiro da casa com o marido e os filhos.

“O pessoal está na rua jogando bola, e no sábado estava a maior música na rua”, conta Michele. “As pessoas estão achando que é brincadeira, até ter algo muito próximo delas, elas não percebem o quanto esse assunto é sério.”

Para muitos, porém, seguir trabalhando é visto como a única forma de sobreviver. Aos 77 anos, o metalúrgico aposentado Jair Araújo continua saindo de casa para visitar a igreja, uma praça e o posto de saúde. Ele complementa a renda de aposentadoria com os bicos de pedreiro e jardinagem no bairro. O dinheiro extra, que chega a ultrapassar R$ 700, ajuda a sustentar a casa, onde moram 15 pessoas. De vez em quando, ajuda a completar o valor da prestação do carro da filha ou a cesta de remédios para os parentes. Ele parece convencido de que é ficar parado que o deixaria doente. “Eu uso a máscara, mantenho distância, não fico no meio de aglomerações”, conta, despreocupado. “O meu objetivo é trabalhar, doa a quem doer, com dignidade e honestidade.”

Risco

O epidemiologista Bernardino Alves Souto, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), alerta que a volta do movimento no comércio pode ter consequências mais graves para a comunidade Segundo ele, estudos apontam que a mortalidade pela covid-19 é mais alta em bairros mais populosos, em que mais pessoas estão concentradas em um espaço pequeno. “Se elas não levam a sério a quarentena, o risco da epidemia se disseminar de uma maneira mais intensa e mais grave é maior para a própria comunidade”, afirma. Souto também diz que não faz sentido que a quarentena vigore em apenas alguns bairros da cidade. “A negligência em um bairro significa risco para o outro também.”

Prefeitura. Em nota, a Prefeitura disse que cerca de 2 mil agentes têm trabalhado na conscientização de ambulantes e comerciantes para manter estabelecimentos fechados. Até o momento, segundo a gestão municipal, 33 lugares foram interditados por não acatar a decisão de fechamento, e uma empresa foi multada no valor de R$ 9.231,65.

“A população tem colaborado com a determinação dos decretos municipais” , diz a Prefeitura. “Os locais que descumprirem o exposto no decreto estão sujeitos à interdição imediata de suas atividades e, em caso de resistência, cassação do alvará de funcionamento.”

Fonte: Dow Jones Newswires.
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