Na proa da canoa, o menino Francisco Uruma olhava para o pai e para o avô, que, em concentração, buscavam o pirarucu nas águas do rio, no Alto Solimões. Era mais do que uma pesca. Da mesma forma, o caminho pela mata para buscar açaí era mais gostoso até que a pequena fruta. O que importavam mesmo eram as histórias ao longo dos caminhos. Uruma de 40 anos de idade, é cacique da Aldeia Tururucari-Uka, do povo da etnia Omágua-Kambeba. Eles vivem em terra na área rural de Manacapuru (AM) desde 2004. O cacique já tem três netos (que vivem em outra aldeia, a sete horas de barco) e espera ser para eles o que os ancestrais representaram na sua vida. Domingo, o pai, de 82 anos, ainda trabalha e gosta de contar histórias. Até pelos exemplos que teve, o cacique orienta que toda a comunidade mantenha contato permanente com os mais velhos para que as tradições e os saberes não se percam. Neste domingo (26), porém, Dia dos Avós, vai ser mais um dia em que os mais velhos serão ouvidos, mas com distância.
“Como a aldeia é em círculo, conversamos aos gritos, cada um da sua casa”. Todos de máscara. A aldeia tem 60 pessoas. Nas conversas, os mais velhos contam histórias de superação e de lendas que revigoram a raiz da comunidade. Falam também que é necessário se proteger e se isolar, caso o vírus contamine alguém. No único caso positivo confirmado, a doença não evoluiu. “Precisamos cuidar dos mais velhos que estão conosco”.
Para Uruma, que também tem curso de coaching, é preciso que os mais jovens, também em situações como essa, tenham atenção e respeito cada vez que os mais velhos falam. Estar com os netos é mostrar união, dedicação, passar conhecimentos vividos e mostrar que ser avô indígena também faz parte da sabedoria milenar”, diz o jovem avô cacique, que é pedagogo e agente de saúde. Em tempos de pandemia, ele organizou o povo para não receber visitantes. Nem mesmo a família. A saudade dos netos é uma parte dolorosa dessa história. A aldeia que recebia grupos de turistas teve que se fechar para se proteger. Assim, nem mesmo os familiares que vivem em outras regiões podem entrar. “A gente se fala por telefone e mensagens”.
Ouvir os idosos
A geógrafa Márcia Kambeba, que é mestre e pesquisadora sobre a identidade de sua etnia, ratifica que os avós na aldeia ocupam espaço destacado. “Quando criança, nós somos orientados a ouvir as narrativas dos nossos avós. Os avós são fundamentais na construção do ser-pessoa. É normal na aldeia a gente se reunir ao redor da cadeira de um idoso. Enquanto ele fala, todos têm que ouvir em silêncio. Nós somos treinados a ouvir”, afirma.
Ela lembra que a família a estimulava a visitar casas dos mais velhos para ouvir, a cada dia, uma história diferente. “É preciso prestar atenção em cada detalhe falado. Assim, fui aprendendo sobre o rio, sobre a mata e a espiritualidade. Isso contribui para crescermos num ambiente saudável. Os idosos são o eixo de transmissão dos saberes de um povo”. Como pilar de vida, Márcia destaca que a avó, Assunta, falecida em 2001, foi referência fundamental de vida para ela.
“Deitada em uma rede com fibra de tucum, ela contava sobre as dificuldades que eu iria enfrentar”. E apontou os caminhos. A avó falava de natureza à literatura. Hoje, Márcia, que também é escritora, leva poesia a asilos em grandes cidades. “O lugar do idoso não é no quarto do fundo da casa. Eles são nossos troncos velhos e não podem ser silenciados nem ficar à margem de uma família. Há jovens que não querem mais ouvir narrativas. Isso entristece os mais velhos”.
Transmissão da cultura e saberes
O agricultor Simplício Arcanjo Rodrigues, de 59 anos, um dos fundadores da Coordenação Nacional de Articulação de Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), vive na comunidade de Rio das Rãs, em Bom Jesus da Lapa (BA), onde vivem pelo menos 800 famílias e mais de duas mil pessoas. Ele é avô de quatro netos. Todos estão longe: três, a 150 km de distância, em outra comunidade na Bahia, e uma caçula em São Paulo. A pandemia adiou os encontros que costumavam ser frequentes nas férias.
Ele entende que um dever de avô é garantir a transmissão da cultura e dos valores de luta do povo dele. Rodrigues reconhece que a invasão de outras influências acabam afastando os jovens mesmo das comunidades centenárias. “O que eu passo para eles é a cultura afro-brasileira, e os valores de respeito à família e a história do povo negro aqui no país. Conhecimento representa empoderamento”. Escravidão, mortes, fugas e preconceito fazem parte das discussões na comunidade.
Ele testemunha uma conquista local que foi direito à terra onde a comunidade vive. A vitória na justiça, mediante laudo antropológico, completou 14 anos, mesmo havendo registro da presença de quilombolas no local há mais de dois séculos. “Foi muita luta porque havia disputa dessa área por outros grupos”. Essa história é uma das preferidas dos mais jovens. Tanto que ele faz questão de visitar as três escolas da comunidade quilombola para repetir a história do lugar. Por isso, ele se considera um avô também para a comunidade. “Nossos ancestrais morreram na esperança que a gente melhorasse a situação. A história não pode morrer na gente”. E não morre. Há um cemitério nas proximidades da comunidade. E ele considera isso importante para “lembrar de onde viemos”. “Os mortos carregaram os vivos. São nos nossos ancestrais que nós buscamos força e resistência”.
Mesmo com as influências de fora, afinal uma comunidade “não é uma bolha”, Simplício Arcanjo testemunha que tradições são mantidas, como pedir as bênçãos aos mais velhos e as festas religiosas em várias denominações. “Uma das coisas que a gente combinou por aqui é que um deveria respeitar a religião do outro”. São os mais velhos que devem passar isso para os mais jovens. “Aí tanto faz se é neto de sangue ou não”. Simplício sabe que, quando há eventos turísticos na região, que atraem brasileiros e até estrangeiros, os mais jovens conseguem explicar de onde vieram.
Mesmo de longe, a pequena Emanuele, de sete anos, neta de Simplício, diz que tem muito orgulho do que representa o avô para a comunidade. “Ele é um homem batalhador. Ele é muito bom”. A esposa de Simplício, Paulina Souza Rodrigues, de 59, professora de escola da comunidade, sente muito a falta da neta e está angustiada porque sabe que dificilmente terá a visita da neta no final do ano. “Temos nos falado sempre. Ela diz que está com muita saudade. A neta não desgruda dos avós nas férias. Quando ela vem, não para de brincar. Vai no rio comigo e pede para a gente contar histórias. Agora, está sendo por telefone”. Paulina considera que o papel dos avós está sendo desafiador porque as crianças estão encantadas pelas novidades tecnológicas e nem sempre eles nos escutam.
Quem celebra ter escutado a avó é a professora de português Rosângela do Socorro Ramos, de 52 anos, que nasceu e foi criada na comunidade quilombola de Curiaú, em área rural de Macapá (AP). Hoje, a docente mora na cidade em função do trabalho, mas ela recorda que foi Maria Jovina Ramos (já falecida), que não pôde estudar, que estimulou que ela fosse fazer faculdade na Universidade Federal do Pará. Na formatura, em 1991, a avó esbanjava orgulho da neta. “Minha avó me mostrou uma visão muito além do tempo dela. Mais do que escolaridade, ela e outras mulheres de minha comunidade fizeram questão de passar para a gente que as mulheres deveriam estudar e ocupar espaço”.
Rosângela é professora em área urbana, mas sempre volta à comunidade. Um dos compromissos é com a Associação das Mulheres Mãe Venina do Quilombo do Curiaú. A missão do grupo é promover discussões com mulheres de várias faixas etárias sobre independência feminina. “Mesmo com tantas influências que os mais jovens recebem de fora, as avós que criaram muitas pessoas na comunidade querem ser ouvidas”. Entre as mensagens, o estímulo ao estudo e ao trabalho para que não fiquem confinadas em uma perspectiva doméstica. “A associação foi criada por inspiração de mulheres como a minha avó”. E de outras mulheres, como a professora Celeste Silva, de 75 anos, 30 netos e 15 bisnetos. “Os dias são difíceis com as novas gerações, mas nós precisamos continuar ensinando o respeito, independentemente de ser família ou não. Aqui na comunidade quilombola, tentamos trazer essas conversas sempre. Nesse momento, ficamos mais distantes por causa do vírus”.
Em grandes cidades
A aposentada Antônia Braz da Silva, de 74 anos, mora na zona leste de São Paulo desde a infância, quando os pais deixaram o distrito de Pedra Tapada, na cidade de Limoeiro (PE), para começar tudo de novo na capital econômica do país. Avó de sete netos e viúva, ela mora sozinha e tem se sentido angustiada e “presa” com a pandemia. A comunicação passou a ser apenas por videoconferência.
“Não sei quando os verei de perto de novo e quando virão aqui (três dos quatro filhos não vivem mais em São Paulo)”. Mesmo acostumada com a distância, ela se sentiu agora mais isolada. Sente falta, por exemplo, da possibilidade da presença e de contar histórias da família. “Quando eles eram menores, faziam mais perguntas e ouviam mais. Hoje, já são adultos e têm menos tempo”. Ficou mais satisfeita no ano passado, quando precisou fazer uma cirurgia, e os netos passaram a perguntar mais sobre ela. Durante a quarentena, vibra com cada ligação que recebe.
Cada ligação também tem um sabor especial para a enfermeira Eleuza Martinelli, em Brasília. Só que, no caso dela, ser avó é uma novidade que surgiu durante a pandemia. “Sempre sonhei em me tornar avó e em julho de 2019 recebi a notícia de que este sonho iria se realizar. Tudo muito escolhido e preparado para recebermos a Rafaela. Minha primeira neta”. A menina nasceu em Goiânia (GO), em 26 de fevereiro, data em que foi registrado o primeiro caso de covid-19 no país.
“Não imaginávamos que a doença iria trazer tantos transtornos e mudar muitos nossos planos. A alegria era muito grande. Uma mistura de sentimentos de avó e de mãe que é indescritível. Porém a pandemia mudou nossos planos e achamos melhor nos distanciar”. A partir daí, as conversas, orientações e carinhos tornaram-se virtuais, mesmo que tão reais. “Trocas de mensagens e chamadas de vídeos viraram rotinas. Neste domingo (26), ela faz 5 meses e está cada dia mais esperta”. Não era de longe como Eleuza e o marido, Jaime, esperavam passar o dia dos avós, mas…“Falo todos os dias com minha filha Mariana, recebemos vídeos e fotos de cada novidade. Sempre reinventando uma nova forma de compensar o contato físico. Aprendemos uma nova maneira de amar que transcende todas as barreiras que a pandemia trouxe”.
A comerciante Graça Carvalho, de 61 anos, avó de três netos, mora em Parnamirim (RN), na Grande Natal, e optou por ficar longe para se proteger e também à mãe dela, Maria, de 95 anos. Está passando um tempo na casa da família, em Santana do Matos, a 200 km da capital potiguar. Graça foi avó pela terceira vez durante a pandemia. Ana Letícia completou um mês de vida. “O que a gente deseja para os netos é amor, proteção. Nesse momento, a forma de fazer isso é todo mundo se cuidar ficando longe”.
O cuidado com os idosos
Avós têm razão em estar em alerta e serem cuidadosos, mas a contaminação não significa uma sentença de morte, segundo o médico Thiago Rodrigues, presidente da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia, no Distrito Federal. Ele testemunha que a possibilidade da infecção tem elevado a tensão entre os mais velhos, mas é necessário, sobretudo, fazer a prevenção adequada. “Nesse momento, guardar distanciamento é importante. Os idosos são elos mais fracos e vulneráveis. Nesse Dia dos Avós, a celebração tem que ser com distanciamento dos mais jovens”. O médico explica que o organismo dos idosos é mais suscetível principalmente por causa da pneumonia que o vírus pode provocar.
“A pneumonia viral acaba inflamando o nosso pulmão e diminui a capacidade de oxigenação do nosso sangue. Nos idosos, pelo processo de envelhecimento natural, eles estão mais vulneráveis às doenças crônicas que afetam o organismo de forma sistêmica. Quem tem alguma comorbidade acaba tendo uma descompensação das doenças que já possuía”, explica. Além da preocupação com o distanciamento, o médico indica que é necessária também atenção com o estado emocional dos mais velhos. “O distanciamento físico não deve significar isolamento de carinho. Um reflexo positivo desse momento tem sido uma preocupação das pessoas se conectarem mais. Uma condição de muitos idosos em momento de não-pandemia já era o de isolamento e eram colocados à margem. Nesse momento, os jovens também estão experimentando isso e percebem também que existe solidão. Uma ligação nesse Dia dos Avós é um gesto importante nesse contexto. Após a pandemia, imagino que pode haver um renascimento do desejo de abraçar e de estar mais perto dos idosos”.
No outro lado desse abraço, pode estar a criança. Presidente do Departamento de Imunizações da Sociedade de Pediatria de São Paulo, o médico Marco Aurélio Sáfadi, explica que as complicações com crianças e bebês são muito raras. “Não quer dizer que não exista risco. A maioria das crianças que tem a doença passa de uma forma tranquila. Temos dúvidas sobre o papel das crianças na transmissão do vírus. Dados preliminares indicam que os principais transmissores são adultos jovens. Mas é necessária muita cautela e especial cuidado em caso de convivência entre crianças e avós”. O médico recomenda que as crianças, de todas as idades, devem utilizar máscara para proteção dos mais velhos. No aspecto emocional, ele considera que, em uma situação de pós-pandemia, os mais novos terão condições de se readaptar à realidade. “Elas têm uma capacidade de superar o que ocorreu. Mas devemos considerar os contextos sociais de muitas famílias em situação de precariedade”.
A psicóloga Daniela Taborianski Lima, que atua em Bauru (SP), concorda que as crianças têm uma compreensão maior e capacidade de readaptação que os adultos desconhecem. Mesmo diante da distância dos avós, há um lugar reconhecido pelos menores. “Os avós trazem um modelo de amorosidade, que representa segurança. Tanto é assim que, em momentos de dificuldade e dor, costumamos recordar da experiência com eles e elas”. A psicóloga recomenda que os adultos devam conversar abertamente sobre a situação com os menores, explicando que essa situação é temporária e que, por isso, se deu o isolamento. Da mesma forma, ela salienta que, tanto para crianças como para os idosos, momentos como esse podem requerer acompanhamento profissional de forma que as pessoas sejam cuidadas emocionalmente. Inclusive, Daniela Lima experimenta aos 40 anos a experiência de ser avó. “Está sendo uma experiência enriquecedora e amorosa com minha pequena Alice, de dois anos”.
“Amorosidade também é ensinado”
Seja nas comunidades centenárias, em área rural, sob o movimento da natureza, ou apreendido nas correrias das vidas urbanas, chamar vó e vô costuma aliviar o dia. “Amorosidade também é ensinado”, explica a psicóloga. Amor para ensinar a pescar, lutar e traduzir os “mistérios da vida”. Por enquanto, de longe. “Em breve vamos nos encontrar em um novo normal. A vida vai seguir e em cada etapa vamos reinventar uma forma de viver intensamente esse amor que até então eu desconhecia”, diz a avó Eleuza Martinelle, em Brasília. “Eu não sei se tenho tanto a ensinar. Mas sei falar do passado”, como diz o avô Simplício Rodrigues, em comunidade quilombola na Bahia. Avós são feitos desse saber vivo, de uma saudade em andamento, e desse lugar-amor multiplicado.
Edição: Beatriz Arcoverde
Agencia brasil de Comunicação