Clarice, 100 anos: “Brasil deve ter muito orgulho dela”, diz biógrafo

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© 14/04/2015Wikipedia Commons

Amores, paixões, afetos… quem poderia, com exatidão, definir sentimentos com verbos, adjetivos ou substantivos? “Há muita coisa a dizer que não sei como dizer. Faltam as palavras”, disse a narradora no livro Água Viva (1973), obra consagrada de Clarice Lispector.

A autora, que nasceu na Ucrânia há 100 anos, e chegou ao Brasil com 12 anos de idade, inspirou um historiador norte-americano a encontrar palavras para escrever sobre sua vida, movido por um sentimento imediato, da vastidão do que parecia indefinível. “Clarice é um amor de minha vida”, afirma Benjamin Moser, hoje com 44 anos, que vive em Paris (França), de onde conversou por telefone com a Agência Brasil.

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Ele explica que se deparou com a obra de Clarice quando ainda estava na faculdade, nos Estados Unidos, e aventurou-se em uma aula de português. Apaixonou-se pela obra A hora da estrela, que ele traduziria depois para The hour of star. “Não temos Macabéas apenas no Brasil. Elas estão em todos os lugares”. Foram cinco anos de investigação sobre a história da escritora e família, fugidos da guerra na Ucrânia, para publicar, em 2009, a biografia Why this world – a biography of Clarice Lispector (com o título em português Clarice, uma biografia).

Ouça abaixo trecho da entrevista sobre a descoberta de Clarice Lispector pelo historiador:

Desde a publicação do livro, Moser foi premiado, divulgou a obra em toda a Europa e América do Norte, e constatou que a escritora era pouco conhecida fora do país em que viveu. Até mesmo no Brasil, avaliou que sua obra era mais apreciada por intelectuais. O amor avassalador pela personagem real que descobriu, de olhar e expressões enigmáticas, descortinou um desejo de levar Clarice pelo mundo, a tiracolo, na busca pela justiça do dizer sobre a autora, que morreu em 1977. “O Brasil deve ter muito orgulho de ter uma escritora como ela. Autoras como ela não há no mundo inteiro”.

Ouça trecho de entrevista de Benjamin Moser sobre o crescente interesse internacional na obra

De Clarice, Benjamin Moser já traduziu oito obras, coletânea de contos e até livros infantis. No final de novembro, publicou os textos da autora voltados para as crianças em holandês. Outra empreitada de Moser foi contar a história da escritora e pesquisadora Susan Sontag. O trabalho lhe rendeu o cobiçado prêmio norte-americano Pulitzer neste ano de 2020, na categoria de biografia. 

Na entrevista abaixo, o autor explica os caminhos para contar a história da autora, as descobertas e antecipa por onde deve seguir na escrita das próximas linhas.

Agência Brasil: Depois de você publicar a biografia da Clarice, em 2009, você passou a se dedicar a divulgar a escritora pelo mundo inteiro. Por que? Pode falar um pouco sobre isso?
Benjamin Moser
: Eu era muito novo quando comecei a pesquisar a história da Clarice Lispector. Eu estava na faculdade. Aliás, Clarice instiga muito as pessoas mais jovens. Foi meu caso. Eu era desconhecido e Clarice também, para o público geral. Eu tinha que convencer muita gente a prestar atenção em mim e depois ficarem atentos à Clarice Lispector. Quando eu penso naquele tempo, lembro do medo que eu tinha de fracassar nisso. Eu não tinha contrato com editoras, nenhuma promessa de publicação. Para minha grande surpresa, esse meu livro triunfou pelo mundo. Um sucesso muito grande. E a segunda parte do trabalho é a tradução dela para o inglês e para outros idiomas. A gente lançou agora no final de novembro os livros infantis em holandês. Nos EUA, ninguém sabia quem era Clarice Lispector. Agora os livros estão aí. Na semana passada, fechamos oito livros dos nove que queremos traduzir. Tem sido pelo mundo um sucesso enorme. E pensar que ela morreu basicamente lida por poucos. Não tinha alcançado esse nível, esse status de deusa nacional. Não tinha estátua dela em Copacabana.

Rio de Janeiro - Estátua da escritora Clarice Lispector e seu cão Ulisses, no Leme (Fernando Frazão/Agência Brasil)
Rio de Janeiro - Estátua da escritora Clarice Lispector e seu cão Ulisses, no Leme (Fernando Frazão/Agência Brasil)

Rio de Janeiro – Estátua da escritora Clarice Lispector e seu cão Ulisses, no Rio – Fernando Frazão/Agência Brasil

Agência Brasil: Neste ano do centenário, a pandemia interrompeu projetos?
Moser:
 Este ano lançamos nova edição de A Hora da Estrela, Uma aprendizagem ou O Livro dos Prazeres, e livros infantis. Perdemos a chance de fazermos eventos. Aqui em Paris foi cancelado o evento que estávamos programando. [Apesar disso], o interesse mundial só tem crescido. Agora eu vou até o final [nas traduções]. Hoje eu posso morrer e Clarice vai continuar sem mim. É uma pena que a gente não possa fazer uma grande comemoração em Nova Iorque. Em Pernambuco. Imagina como teria sido na Praça Maciel Pinheiro, no Recife, onde ela cresceu.

Agência Brasil: Você descobriu muita coisa depois de publicar a biografia?
Moser: 
De fato, nessa década, surgiram muitas coisas novas. Mas eu não mudaria nada no trabalho. Uma biografia tem sempre isso de novidades e outras informações que surgem depois. Na verdade, seria um trabalho que não teria fim. Tenho muito orgulho de ter feito esse livro na hora certa. Hoje infelizmente não tem quase ninguém vivo da época da Clarice.

Agência Brasil: Como é o seu processo de investigação? Como são as entrevistas?
Moser:
Nesse processo de descobrir, não era exatamente uma entrevista. Tem que criar uma atmosfera. Isso leva muito tempo. A gente convive com as pessoas. Quando eu fiz, eu ficava admirado que todas aquelas pessoas confiavam em mim. Talvez por eu ser estrangeiro. Mas as pessoas têm vontade de contar suas histórias e deixá-las eternizadas. 

Agência Brasil: Você teve vontade de escrever sobre outros personagens brasileiros?
Moser:
 Não vou fazer outra biografia. São projetos que duram muitos anos. A biografia sobre Susan Sontag (vencedora do Pulitzer de 2020) demorou oito anos. A biografia da Clarice levou cinco anos.

Agência Brasil: Por que você se identificou e se apaixonou por Clarice?
Moser:
 Clarice é um amor de minha vida. Dediquei e dedico muitos anos da minha vida a esse trabalho. Tem uma inspiração e uma paixão que me levaram a ela, como também inspirou muitos leitores e artistas, como diretores de teatro e cinema.

Agência Brasil: Datas como a do centenário são importantíssimas para divulgar a obra, não é?
Moser: 
Sem dúvidas. Fundamentais. Eu lancei a biografia em 2009. Todos os jornais deram grande atenção. Eu estava planejando voltar ao Brasil para o centenário. É preciso chegar a mais brasileiros e pessoas do mundo inteiro. Na época, eu fiz palestras em escolas públicas em vários estados aí do Brasil, e cidades nos Estados Unidos, e na Europa. 

Agência Brasil: O biógrafo acaba tratando de assuntos delicados. A violência sexual que a mãe da Clarice sofreu na guerra, por exemplo. Como você conseguiu adentrar por esses assuntos. É como um detetive?
Moser:
 É isso o que mais adoro. É como o [trabalho] de um detetive. Só que é um levantamento de registros e documentos. Como que era a Ucrânia no século 19? Eu não sabia. De repente, você se vê perguntando sobre violência sexual, doença mental, dinheiro. Não é fácil no início. Mas, para nossa surpresa, as pessoas gostam de falar. Eles gostam de contar essas histórias para deixar registrado para sempre. Uns vão indicando os outros. O biógrafo deve vasculhar os arquivos. Eu adoro fazer investigação. De repente, a história se transforma. Esse trabalho de detetive, como você falou, é muito importante para criar uma paisagem de uma história real. Ouvir as pessoas é algo muito gentil. Vocês do jornalismo fazem isso também: deixar as pessoas falar é importante. 

Agência Brasil: Escrever a biografia de uma autora de ficção pode conduzir a falsas pistas e vestígios?
Moser:
Há uma ideia de que obra é uma coisa e a vida é outra. Mas vamos pensar que a ficção vem do lugar mais íntimo de alguém. Um exemplo é como Clarice escreve sobre as mães, sobre as famílias. Ela coloca, claramente, elementos da própria vida nos textos de ficção. A escolha de uma abordagem é algo íntimo e indica pistas importantes. Todo escritor coloca ênfase no que interessa. A mesma história pode ser contada por um escritor de uma forma bem diferente.

Agência Brasil: Afinal de contas, o que mais te impressionou na escritora?
Moser:
Eu queria falar que a primeira impressão que eu tive dela foi de uma foto. Aquele olhar. Eu nunca tinha ouvido o nome dela na vida. Olhei e perguntei: ‘Quem é você?’. Eu queria saber. Ela me instigou desde o começo. Queria entender quem era. Foi um sentimento de amor conforme descobria detalhes da vida dela.

Agência Brasil: A Hora da Estrela (obra de 1977) foi o trabalho que te intrigou e te fez apaixonar pela obra da Clarice durante a faculdade. Continua sendo sua obra predileta dela?
Moser:
Curioso que a gente publicou agora uma edição em inglês. Em 1995, eu topei com esse livro. Vinte e cinco anos depois trabalho de novo com esse livro.

Agência Brasil: Mas queria te perguntar se Macabéa (a personagem principal de A Hora da Estrela) tem características bem brasileiras, da nossa realidade, ou se é uma personagem é universal?
Moser:
É universal. A pessoa esquecida, desvalorizada, que ninguém presta atenção está em todos os lugares. De toda forma, Clarice destaca cidades brasileiras. Por falar nisso, queria dizer que o Brasil pode e deve orgulhar-se de ter Clarice Lispector. Ter essa mulher na terra brasileira é motivo de muito orgulho. Autoras como ela não há no mundo inteiro.

Agência Brasil: Além do seu trabalho com Clarice pelo mundo, você publicou a biografia de Susan Sontag (escritora norte-americana).
Moser:
Foram oito anos de trabalho e mais de cem entrevistas. Ganhei o prêmio do Pulitzer e fui surpreendido pela notícia. Minha mãe teve covid-19 e eu tive medo de perdê-la. Felizmente ela ficou boa. Seria horrível ganhar o Pulitzer sem que minha mãe soubesse disso. Quero homenagear a cultura que meus pais possibilitaram a mim. Fiquei até mais feliz pelos meus pais do que por mim.

Agência Brasil: Além das traduções, sobre o que você está escrevendo agora?
Moser:
Eu estou trabalhando em um novo livro sobre a minha geração de norte-americanos, uma geração que se decepcionou com o país. A gente imaginava que os Estados Unidos continuariam em evolução. Somos uma geração decepcionada. Eu não sei quando vou publicar. Na pandemia, tenho obrigação de ficar escrevendo. Eu gostaria de terminá-lo no ano que vem. O trabalho tem o título Um príncipe do império. Tomei emprestado de uma obra brasileira, do (escritor e historiador) Joaquim Nabuco (1849-1910). Eu também pretendo voltar ao Brasil. Tenho várias ideias, mas preciso primeiro digerir as questões de minha geração.

Edição: Nathália Mendes/Denise Griesinger

Fonte: Luiz Claudio Ferreira – Brasília
Crédito de imagem: © 14/04/2015Wikipedia Commons