“Sou brasisírio”: conheça refugiados de uma guerra que já dura 10 anos

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© Fatima Ismail/Acnur/Divulgação

Nos últimos dez anos, o dia 15 de março traz para a população síria lembranças de um passado que se foi. Nesta data, em 2011, começou a se desenhar o conflito armado na Síria – que dura até os dias de hoje. Cerca de dois meses antes, grandes protestos populares, em sintonia com o que ocorria em outros países e que ficou conhecido mundialmente como a Primavera Árabe, ganhava contornos violentos. Desde então, uma guerra por poder entre o governo liderado pelo presidente Bashar al-Assad e oposicionistas ficou mais complexa, com contornos políticos, étnicos e religiosos, e com diversos grupos promovendo ações hostis entre si.

Passados dez anos, o conflito não parece próximo de uma solução. Segundo estimativas da Organização das Nações Unidas (ONU), 387 mil pessoas morreram, sendo mais de 115 mil civis. Além disso, há atualmente cerca de 6,6 milhões de refugiados sírios espalhados por todo o mundo. São pessoas que tinham uma vida normal, trabalhavam, estudavam, passeavam, tomavam café com seus amigos e tiveram que deixar tudo para trás.

Aproximadamente 3,8 mil deles chegaram ao Brasil na última década. Mais de 80% deles se concentram em São Paulo, no Rio de Janeiro e no Paraná, onde já existia uma comunidade sírio-libanesa consolidada.

O choque cultural e a diferença de realidade entre países da América do Sul e do Oriente Médio fazem com que, para os refugiados sírios, a adaptação ao Brasil seja um processo mais lento e repleto de desafios adicionais. Aprender um idioma com alfabeto e regras gramaticais completamente diferentes é o principal deles. Mas, tendo superado as dificuldades, o ativista Abdul Jarour, a chefe de cozinha Fatima Ismail (foto em destaque) e a arquiteta Lucia Loxca se sentem hoje em casa.

“Não sou a mesma pessoa que vivia na Síria. Sou outra pessoa. Absorvi uma nova cultura, uma nova língua. Hoje sou brasisírio”, diz Abdul. O termo usado por ele para descrever sua nova nacionalidade parece traduzir o sentimento de outros refugiados que encontraram no território brasileiro um local para reconstruir suas vidas.

Ativista Abdul Jarou (crédito: Acervo Pessoal)
Ativista Abdul Jarou (crédito: Acervo Pessoal)

No Brasil, o ativista Abdul Jarou se apaixonou pelo futebol e pela música sertaneja – Abdul Jarou/ Acervo Pessoal

Abdul conta que encontrou no futebol e na música portas de acesso à cultura brasileira. “Comecei a ir aos jogos para ver como é o povo brasileiro e me apaixonei. Me tornei corintiano. Quando você está no campo é todo mundo junto, todo mundo gritando. Ninguém sabe sua identificação social, sua riqueza. Também me apaixonei pelo ritmo sertanejo. Gostei muito de Henrique e Juliano. Repetia as palavras sem entender o significado. Com o tempo fui entendendo. Jorge e Matheus é muito bom. Cristiano Araújo, que faleceu, mexeu muito comigo. O acidente dele em 2015 me emocionou porque tinha uma música dele que eu cantava todos os dias”, conta.

No país desde 2014, mais precisamente em São Paulo, Abdul estudava administração de empresas e comercializava acessórios eletrônicos na Síria. Deixou sua terra natal quando completou 20 anos, fugindo do serviço militar obrigatório. No Líbano, país vizinho à Síria, recorreu às embaixadas do Canadá e da Austrália, mas não obteve o retorno esperado. Cogitou a travessia por mar até a Turquia, mas tinha receio de se afogar como alguns de seus compatriotas.

“Queria um país que me reconhecesse como ser humano, que me desse direito de viajar legalmente. E foi aí que tive notícia que o Brasil estava concedendo um visto humanitário para o povo sírio. Fui à embaixada, fiz uma entrevista, paguei o visto e comprei minhas passagens, de ida e volta, porque não sabia se ia ficar. Tinha medo também. Estava indo pra um país do outro lado do mundo. Então eu digo que vir para o Brasil não foi minha escolha. Foi uma escolha de Deus”, conta.

Brasil e Síria não possuem entendimentos bilaterais para isenção de vistos de entrada. Dessa forma, antes de embarcarem, os sírios precisam se dirigir a uma embaixada ou consulado brasileiro e solicitar permissão para entrada no país. Até 2012, muitos refugiados chegavam com o visto de turista, o que permite a permanência em território brasileiro por um período inicial de 90 dias e que pode ser renovado por mais 90 dias.

O que se convencionou chamar de visto humanitário é um procedimento simplificado que o Brasil adotou em 2013 para a entrada dos sírios. Paralelamente, o Comitê Nacional para os Refugiados (Conare) reconheceu a grave e generalizada violação de direitos humanos na Síria e acelerou o processo de análise dos pedidos de reconhecimento da condição de refugiado. Assim, a partir de 2014, houve um aumento no número de sírios que desembarcaram no país ainda que esse fluxo tenha caído significativamente desde o início da pandemia de covid-19, no ano passado.

Abdul foi acolhido na capital paulista. O sírio chegou a trabalhar vendendo alimentos e como motorista. Com o tempo, se tornou ativista da causa migratória. Hoje lidera projetos sociais e promove palestras que abordam temas como refúgio e migração, história da Síria, política no mundo árabe. Uma iniciativa da qual se orgulha é ter sido um dos criadores da Copa dos Refugiados, uma competição de futebol coordenada pela organização não governamental África do Coração e financiada pela ONU, por meio do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur). A última edição, ocorrida em 2019, reuniu cerca de 1,12 mil atletas de 39 nacionalidades.

Apoio e acolhimento

A experiência pessoal é um dos motivos que levaram Abdul a engajar-se em ações voltadas para o acolhimento dos refugiados e imigrantes. Sem conhecer ninguém nem dominar o idioma português, ele conta que se sentiu perdido, em um primeiro momento. Apesar de ressaltar o perfil acolhedor do povo brasileiro, avalia que a integração não é simples.

“Hoje me tratam como brasileiro. O povo é muito acolhedor, simpático, amoroso. Na Europa, talvez ainda me tratassem como estrangeiro. Mas aqui no Brasil não, me tratam como um igual. Houve pessoas que eu conheci que considero como minha família. Me deram força, me estenderam a mão. Mas no início me senti perdido. É um país tão grande. A questão de documentação, de integração, de conseguir emprego e moradia. Hoje tenho domínio da língua, conhecimento da cidade, estou me virando como trabalhador autônomo. Mas seria muito difícil sem o apoio das organizações sociais, das instituições ligadas à ONU, de entidades do terceiro setor. Eles fazem projetos que possibilitam a integração”.

Estas organizações e entidades se articulam por meio de uma rede mobilizada pelo Acnur. Ela foi criada pela ONU para assegurar e proteger os direitos das pessoas em situação de refúgio em todo o mundo. No Brasil, o Acnur atua diretamente apenas em Roraima, devido a preocupações com a situação na fronteira com a Venezuela: o último balanço do Conare mostrou que 65% das 82.552 pessoas que solicitaram refúgio ao Brasil no ano de 2019 eram venezuelanos.

No resto do país, a atuação é indireta, financiando organizações sociais e entidades do terceiro setor. Elas desenvolvem ações em frentes variadas que incluem cursos de português, capacitação profissional, encaminhamento de crianças para a escola, concessão de auxílios sociais e financeiros, atendimento psicossocial, entre outras ações.

O Acnur se mantém exclusivamente com doações que podem ser feitas, por meio de seu site, tanto por pessoas físicas como por governos e empresas privadas. Para 2021, está prevista a aplicação de US$ 5,8 bilhões na resposta humanitária internacional aos problemas decorrentes da guerra na Síria. O investimento, no entanto, dependerá da arrecadação. No ano passado, em meio a uma crise econômica atrelada à crise sanitária causada pela pandemia de covid-19, apenas 53% dos recursos estimados foram levantados.

Segundo Luiz Fernando Godinho, oficial de informação pública do Acnur, o subfinanciamento força a agência a focar no que é mais urgente como garantia de acesso à água, alimentação e moradia, prejudicando outras ações que também são fundamentais, entre elas os programas educacionais e de geração de renda. Ele assinala que, embora os refugiados sírios estejam espalhados por mais 130 nações, cerca de 5,5 milhões dos 6,6 milhões se concentram nos países vizinhos: Jordânia, Líbano, Iraque, Egito e Turquia. A maior parte dos US$ 5,8 bilhões seria empregada nessa região.

“Nesses locais, os impactos da pandemia de covid-19 aprofundaram muito as necessidades econômicas. Vemos um nível de pobreza muito grande. Os levantamentos indicam que 80% deles estão abaixo da linha de pobreza”, diz. Para ele, há uma falha da comunidade internacional, que não parece se empenhar para resolver o conflito, gerando assim maior demanda por recursos. “Só vai haver solução quando os sírios puderem voltar às suas casas. Ninguém quer ser refugiado. São as circunstâncias que os levam a sair do país. E a Síria não oferece hoje condições de retorno. Sem solução do conflito, a crise humanitária permanece”. Em 2019 e 2020, apenas 133.204 sírios voltaram para o país.

Retorno improvável

No Brasil, nem todos os refugiados têm expectativa de retorno. Embora divididos entre a saudade da terra natal e o sentimento de pertencimento que desenvolveram em relação ao Brasil, é comum que eles se sintam integrados na nova sociedade e, muitas vezes, com vínculos formados no país. Segundo Godinho, a realidade brasileira é peculiar pois temos uma legislação avançada que contribui para essa integração, uma vez que garante aos refugiados acesso a serviços considerados universais, como saúde, educação e mesmo programas sociais.

“É diferente de uma situação de campo de refugiados, que existem em outros países do mundo para receber os sírios. Isolados ali, são oferecidos serviços diretamente a eles. No modelo brasileiro, há a inserção das pessoas na rede de saúde, na rede de educação, que está disponível para todos os cidadãos”, diz o oficial de informação pública do Acnur.

Este cenário foi fundamental para Fatima Ismail. De origem curda, etnia que responde por aproximadamente 7% da população síria, ela vivia em Alepo, a maior cidade do país. Deixou sua casa quando a guerra se aproximava e problemas variados começaram a surgir, como desabastecimento de alimentos e crescimento do desemprego. Primeiramente, se instalou na Jordânia, onde ela e o marido trabalharam na fabricação de roupas e sapatos. Mas um problema lhe incomodava: apenas um de seus três filhos foi aceito na escola. Além disso, temia que a pressão do governo sírio sobre os países da região pudesse complicar a situação da família.

“Com o passaporte sírio, era difícil conseguir entrar na Europa. A gente não sabia muito sobre o Brasil, mas pesquisamos pela internet e achamos que São Paulo parecia com Alepo. Eu costumo dizer que não fui eu que escolhi o Brasil. Foi o Brasil que me escolheu. E hoje, eu não penso em voltar. No Brasil passamos algumas dificuldades, mas é melhor do que lá hoje. Se voltarmos hoje, por exemplo, meus filhos tem que parar de estudar e entrar no exército. E podem morrer. Não há garantias para quem entra na guerra”, conta Fatima.

Para ela, a Síria voltou no tempo e o desabastecimento de comida, gás, água, eletricidade se tornou uma realidade: “Tem locais que chega luz duas, três horas por dia. Há filas para comprar pão”.

Essa mesma situação também desperta na arquiteta Lucia Loxca a sensação de que um retorno à terra natal é algo improvável. Morando em Curitiba desde 2013, ela diz que o conflito ensinou a não planejar o futuro: “Claro que, como todos os sírios, temos o sonho de voltar. Mas sendo realista, se voltarmos, não encontraremos a Síria como ela era. Provavelmente seria muito diferente. Parentes e amigos também foram embora e não estão mais lá. Seria muito complicado reconstruir a vida mais uma vez. Hoje nos sentimos estabelecidos no Brasil. Na verdade, é o nosso país agora”.

Mesmo sem expectativa de retorno, o vínculo com os amigos que ficaram para trás se mantém. “Tentamos falar com eles quando bate a saudade. Mas não é fácil o contato. Há regiões onde não há internet sempre. Também tentamos nos manter informados sobre os acontecimentos, mas acompanhar as notícias todo dia cansa e dói o coração”, conta a arquiteta.

Arquiteta e cantora Lucia Loxca (crédito: Acervo Pessoal)
Arquiteta e cantora Lucia Loxca (crédito: Acervo Pessoal)

Lucia Loxca ser formou arquiteta em Curitiba. Além de exercer a profissão, ela também integra um trio musical com o marido e a cunhada – Lucia Loxca/ Acervo Pessoal

Família dispersa

Lucia viveu uma realidade não muito comum entre os refugiados. Sua família, composta por 16 pessoas, deixou Alepo e veio inteira para o país. “Buscávamos um lugar seguro para podermos continuar nossa vida. E não havia muitas opções. Na verdade, só tinha o Brasil. Era o único caminho que poderia ser mais seguro para todos, inclusive os idosos da família. Fizemos uma pesquisa rápida sobre Curitiba e nos pareceu uma cidade tranquila”.

Atualmente, diz ela, todos conseguiram se restabelecer economicamente. Lucia manteve vivo o sonho de se tornar arquiteta. Na Síria, a universidade onde ela estudava foi bombardeada. Tempos após chegar no país, ela conseguiu concluir a graduação na Universidade Federal do Paraná (UFP), a partir de um programa de ações afirmativas para refugiados. Hoje, ela atua na área.

Para outros, no entanto, a realidade é bem diferente. Fatima conta que quatro dos seus sete irmãos também estão fora Síria, dispersos na Europa. Além disso, a guerra causou uma profunda tristeza em sua mãe, que veio a falecer. Situação similar vive Abdul.

“Minha família se espalhou pelo mundo. Tive uma irmã que perdeu uma perna e perdeu o marido. Ela vive na Alemanha. Outra irmã fugiu pro Canadá e outra para o Iraque. Consegui trazer minha mãe e minha irmã caçula em 2019. E infelizmente perdi minha mãe para a covid-19. Ela tinha diabetes e pressão alta e não resistiu. Foi chocante, porque achei que tinha salvado a vida dela e a morte nos perseguiu até aqui”, conta Abdul.

Cultura híbrida

Do idioma à culinária, da música aos costumes cotidianos. O dia a dia desses refugiados moldou uma cultura híbrida: uma cultura simultaneamente síria e brasileira. Ao mesmo tempo em que abriu espaço para o Corinthians e para a música sertaneja em sua vida, Abdul mantém hábitos de sua terra natal. A integração na comunidade de refugiados colabora.

“Eu cheguei sozinho, mas conheci outros refugiados. Todo sábado à noite, nos reunimos e cozinhamos uma comida com os mesmos temperos que usávamos na Síria. E jogamos baralho, um jogo que costumávamos jogar. Conversamos sobre política, nos divertimos, usamos nossa língua nativa, nos conectamos com nossa identidade. Mas fiquei meio misturado, porque o Brasil se tornou minha pátria também. Fiz uma vida aqui”, conta.

No caso de Fatima, a troca cultural se tornou fonte de renda. Hoje ela é chefe de cozinha e prepara pratos sírios. Costumava atender festas e eventos, mas em meio à pandemia de covid-19, tem se sustentado sobretudo vendendo pela internet. “Algumas pessoas gostaram muito da minha comida e falaram que era bem diferente inclusive do tempero dos restaurantes sírios aqui no Brasil. Me incentivaram a vender. Porque a gente traz uma história. A comida, como eu faço, tem uma mistura: comida curda com comida árabe. O tipo de cozinha é diferente”.

Ela também oferece cursos culinários, como o que ensina a fazer pão sírio. “O pão é nosso primeiro alimento. Aqui, o arroz é a base dos pratos. Lá, o mais importante pra gente é o pão. Não fazemos uma refeição sem um pão para dividir com a família”, explica.

Uma dificuldade que ela relata é o custo do trigo e do grão de bico, que são mais caros do que na Síria, já que a produção brasileira desses alimentos é tímida e o país acaba sendo importador. “É possível achar bons preços, mas é preciso pesquisar”, pondera. Fatima ressalta que a conexão com o Brasil tem uma via de mão dupla, já que também aprendeu a gostar da combinação entre arroz e feijão.

Enquanto Fatima dissemina os temperos de sua terra entre os brasileiros, Lucia divulga a música. Além de arquiteta, ela é cantora e integra o Trio Alma Síria, composto ainda por seu marido e sua cunhada, que tocam respectivamente alaúde e kanun, dois instrumentos de corda populares no Oriente Médio. O trio já se apresentou em eventos no Rio de Janeiro, em Brasília, em Florianópolis e em Curitiba.

“Temos formação musical e, quando chegamos, sentimos a responsabilidade de transmitir a nossa história por meio da música. Buscamos preservar nossa cultura. Mantemos a língua em casa, as comidas tradicionais. Mas não dispensamos um pão de queijo, um pastel. Sempre tentamos misturar as duas culturas. Até porque a família cresceu e já tem uma nova geração, que são brasileiros natos.”

Edição: Denise Griesinger

Fonte: Leo Rodrigues – Repórter da Agência Brasil – Rio de Janeiro
Crédito de imagem: © Fatima Ismail/Acnur/Divulgação