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Dostoiévski, 200 anos: autor eternizou-se ao mergulhar na alma humana

© Constantin Shapiro/Domínio Publico

“Chamam-me de psicólogo: não é verdade. Sou apenas realista no sentido mais elevado. Ou seja, retrato todas as profundezas da alma humana”. O pensamento do escritor russo Fiódor Dostoiévski  (nascido em 11 de novembro de 1821), encontrado em seu caderno de notas de 1880, traduz as buscas desse que é considerado um dos principais autores e pensadores do século 19. Ele morreu em 1881. Pesquisadores ouvidos pela Agência Brasil consideram que o autor continua atual em 2021 ao tratar de temas como compaixão, ética e empatia. Tratou dos pobres, humilhados e desvalidos.

Entre as obras mais conhecidas de Dostoiévski, há clássicos da literatura mundial, como Crime e Castigo, O Idiota, Os Demônios e Os Irmãos Karamázov. “Ele é um intérprete da alma humana. Ele percebia as contradições do mundo, o individualismo e perguntava se existia um princípio moral que, de alguma forma, possa se estruturar a vida”, explica o professor Leonardo Guelman, do Centro de Artes da Universidade Federal Fluminense (UFF).

O pesquisador explica que o autor russo pode ser considerado atemporal por tratar dos principais sentimentos humanos, confrontando o leitor. “Qualquer um de nós que for lê-lo daqui a 50 anos ou que leu no século passado vai se deparar com essa experiência do confronto sobre o que nós somos. Também daquilo que nós não efetivamos e talvez pudéssemos ser”. Guelman esclarece que existe uma teatralidade muito forte na obra de Dostoiévski que trata de questões e dilemas éticos. “Duzentos anos após o nascimento dele, vivemos hoje um momento muito conturbado no mundo. Ele é absolutamente atual porque trata desse teatro humano”.

Palcos

Também pesquisadora da obra de Dostoiévski, a diretora e atriz Liliane Rovaris entende que o mergulho na alma humana do texto do autor russo torna toda montagem no palco ou no cinema muito atual. Ela não vê a hora de realizar presencialmente uma montagem a partir de Crime e Castigo (com a direção da brasiliense Camila Márdila) que possa ser encenada não apenas nos teatros tradicionais, mas também em escolas e presídios. “A gente está falando de uma obra universal, atemporal que traz uma semente crítica em relação ao individualismo”, avalia.

Você sabia que Crime e Castigo é uma das obras mais lidas em presídios? Leia aqui


A diretora e atriz Liliane Rovaris participa de uma montagem a partir de Crime e Castigo  – Liliane Rovaris/Direitos reservados

Na montagem Crime e Castigo, 11:45 – um Recorte, em uma produção com o Coletivo de Arte Áreas, a artista mescla o texto de Dostoiévski com um olhar particular e afetuoso para o percurso que a fez descortinar o autor. Inclusive, após perder os pais. O luto a fez percorrer os olhos para um livro parado na estante. Durante a pandemia, encenou uma versão online. No presencial, vai acrescentar até trilha de David Bowie como um diálogo com uma livre interpretação para o personagem Rasconikov (protagonista de Crime e Castigo). O 11:45 do título refere-se à passagem bíblica sobre a ressurreição de Lázaro – Capítulo 11, Versículo 1 a 45 do livro de João. O personagem principal pede, na obra, que Sônia (personagem que se prostitui para salvar a família) leia esse trecho para ele.

Confira trecho da apresentação online divulgada para a Agência Brasil

Senso de responsabilidade

“Não acho difícil a leitura. É como um novelão”, afirma Liliane.

A pesquisadora contextualiza que a obra dele não deve ser vista apenas sob a ótica da fé ortodoxa em contraposição ao racionalismo. “Se Deus está morto, tudo seria permitido. Assim, eu não me responsabilizo por nada e perco a conexão com a vida”. A obra dele esmiúça esse tema e leva às últimas consequências essa premissa. “Se eu não tenho mais esse senso de ligação, de comunhão com todo, quais são as consequências disso?”

As obras apontariam, assim, as consequências da falta desse senso de responsabilidade e do perigo do individualismo exacerbado. O autor escreveu que a beleza salvará o mundo. “Mas não é a beleza da aparência. A beleza, para ele, estava ligada aos sentimentos. Assim ele resgata o sentimento de compaixão”, disse Liliane.

A compaixão nos textos, segundo os pesquisadores, aparece em contraposição ao  sentimento utilitarista e frio. De toda forma, Liliane pesquisou no mestrado sobre Dostoiévski que existe um diálogo que não apresenta quem tem razão. “Ele deixa nos textos que cada um tem a sua razão. Claro que ele mostra os perigos de algumas razões. Isso é muito importante na obra dele. Manter esse mistério do ser humano. Para o trabalho do ator é muito bom porque você tem que estar numa escuta para outras percepções também”.


Retrato de  Dostoiévski – Constantin Shapiro/Domínio Publico

Sertão de Dostoiévski

O professor Leonardo Guelman pontua também que o autor traz pensamentos sobre as estruturas da sociedade, mas trazidas como perguntas. O pesquisador ainda traça paralelos com as estruturas de Grande Sertão: Veredas, do escritor brasileiro João Guimarães Rosa.

“Com certeza, todo clássico lê o outro clássico. Dostoiévski tem uma universalidade, mas ao mesmo tempo não é uma universalidade abstrata. É uma universalidade concreta. Ele traz a exuberância das vozes dos excluídos, dos humilhados e ofendidos. Ao mesmo tempo, assim se faz essa busca de uma interioridade. O Guimarães também traz essa teatralidade do mundo”.

Só que não é o “sertão” das estepes russas, mas brasileiro. “Ali se dá a aventura humana, o embate do existir e do amor. A gente sabe que a grande questão da obra de Guimarães Rosa também é essa. O Deus e o Diabo. Assim o sertão passa a ser um universo da existência humana nos seus contraditórios e de lutas”.

Por onde começar

Os pesquisadores concordam que a leitura trata de universos complexos, mas que podem ser acessados também por leitores que nunca tiveram acesso a uma obra do autor russo. Para Leonardo Guelman, o romance de estreia de Dostoiévski, Gente Pobre, pode ser um passaporte adequado para compreender o autor com uma evidente natureza social. É um romance epistolar com uma troca de cartas entre duas personagens: um homem de meia idade e uma jovem.
“Em cada carta, esses personagens vão se revelando. Da gente pobre, da gente simples nos cortiços nos prédios de São Petersburgo (Rússia), que já é uma metrópole. São os miseráveis que estão ali. É o primeiro romance com a semente  dessa humanidade que está dentro de cada um”. Para o pesquisador, o cerne não está no pessimismo.

“Ele é um autor realista. A obra tem um efeito no leitor no sentido de uma redenção, de uma vontade de transformação. As obras do autor encantam os mais jovens porque tratam de sentimentos atemporais.”

 

Edição: Alessandra Esteves

Fonte: Luiz Claudio Ferreira – Repórter da Agência Brasil – Brasília
Crédito de imagem: © Constantin Shapiro/Domínio Publico

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