Tratar do que o cerca e, ao mesmo tempo, expandir os horizontes para o mundo. Lembrar da infância e, junto, provocar o despertar diante do estranhamento às lógicas dos adultos. Ser realista e denunciador, mas com elementos do mistério, do inusitado e do transcendental. Reunir detalhes com tão evidentes texturas, em ficção, que pareciam até verdade. O escritor colombiano Gabriel García Márquez (1927 – 2014), Nobel de Literatura de 1982, e que faria 95 anos neste domingo (6), encanta leitores mundo afora com romances consagrados, e seu “realismo fantástico“, com uma escrita colorida pelos contrastes. Dentre os admiradores de sua obra, o cineasta inglês Justin Webster mergulhou no mundo do escritor para realizar o documentário Gabo: a criação de Gabriel García Márquez (disponível na plataforma Netflix desde o ano passado e com quatro prêmios internacionais no currículo).
Assista ao trailer oficial do filme Gabo
“O trabalho de García Márquez é uma expressão tremendamente latino-americana, e também universal, da força generosa da criatividade”, afirmou o diretor em entrevista à Agência Brasil. A admiração pela obra do colombiano fez com que o inglês se detivesse a investigar e percorrer o pensamento e as inspirações dele para entender as origens da criatividade que gerou ao menos 30 obras como Cem Anos de Solidão (1967), O Amor nos Tempos do Cólera (1985), Crônica de uma Morte Anunciada (1981) e Notícia de um sequestro (1996). Neste livro, por exemplo, Gabo mistura realidade e ficção. O escritor fez carreira no jornalismo antes de se tornar um dos principais romancistas do século 20.
Chuva de flores e uma praga de insônia, em Cem Anos de Solidão, ou um papagaio poliglota, em O Amor nos Tempos do Cólera, ou humanos que viram animais, em De Amor e Outros Demônios (1994) são exemplos das vastos recursos do realismo mágico utilizados pelo autor colombiano, que usa esses elementos extraordinários como figuras de linguagem para mexer com a imaginação do leitor.
“Como muitos, fora da América Latina, descobri os livros de Gabo na década de 1980, na Inglaterra. E foi amor à primeira vista. Vivo em Barcelona há 30 anos, primeiro como jornalista e escritor de não-ficção, depois como documentarista, e desde o início tive muito contato com escritores latino-americanos”, afirmou o cineasta inglês. Entre os documentários de Justin Webster, outro trabalho que está disponível na Netflix é Nisman: o promotor, a presidente e o espião (2019). Ele assina a direção de outros trabalhos de não-ficção como Morte em León (2018), O Fim do ETA (2013), Serei Assassinado (2013).
Webster explica que, durante todo esse período, García Márquez foi a principal referência de América Latina para ele e era necessário buscar raridades para descobrir mais sobre o escritor. Uma das principais referências no documentário é a influência da infância na pequena cidade de Aracataca, junto com os avós, para entender o pensamento do ficcionista.
O olhar para Aracataca desvenda o mundo do escritor, inconformado com a pobreza e desigualdades na América Latina. “Pesquisei que a sua infância muito particular, na casa dos avós, foi decisiva, como tantas vezes expressou”. Para o diretor, solidão e saudade são marcas da narrativa ficcional. Outro elemento muito importante refere-se às expectativas e às esperanças depositadas nele por sua família. A ligação com o povo da cidade era importante em sua visão política de mundo”.
Busca pelos rastros
O filme reúne raridades de depoimentos de familiares, amigos, críticos e do próprio Gabo sobre como ele pensava. “A verdade é que fazer um documentário sobre ele não é o mais óbvio: há poucas entrevistas com ele diante das câmeras. Então o primeiro passo foi rastreá-los, um a um, e continuar procurando por muito tempo todas as pistas sobre Gabo”.
Entre as descobertas, Webster detalha que o cerco às pegadas e aos rastros de Gabo revelou-se um painel de memórias afetivas e reflexivas sobre a própria existência. “Há muitas influências para decifrar as ideias colocadas no papel pelo autor. Algumas dessas descobertas foram novidades para mim e que nos fez entender muito melhor como o escritor pensava. Sua atitude em relação à morte, por exemplo, que ele define no final do documentário, foi um poderoso motor criativo”.
No filme, Gabriel García Márquez revelou seu inconformismo com a finitude da vida e entende que escrever faz parte da busca por sobreviver além do seu tempo. “Entendo que, como muitos grandes criadores, sua arte era uma forma de terapia, e que ele conseguia resolver seus próprios problemas existenciais, ou mesmo familiares, por meio da escrita”.
Todas são histórias de amor
O documentário traz pensamentos do escritor colombiano que surpreendem aqueles leitores que veem o colombiano apenas como um autor ativista ou engajado em denunciar as mazelas sociais. Gabo diz que, embora tente disfarçar, todos os seus romances são “de amor”. “O amor que ele trata deve ser entendido em um sentido amplo, um amor à vida e às pessoas”, afirma Webster. O livro favorito do inglês é o Crônica de uma Morte Anunciada, que completou 40 anos em 2021, um livro de mistério narrado em estilo jornalístico.
Aliás, ele entende que Gabo deixou legado de luta para essa atividade profissional. “Ele elevou a dignidade do ofício, como diz Jon Lee Anderson (jornalista que foi correspondente de guerra e hoje escreve para a revista New Yorker) no documentário. Ele defendia o jornalismo e amava o que há de mais essencial na profissão, a reportagem”.
Webster espera que a exposição do filme na plataforma de streaming Netflix ajude a difundir as ideias de Gabriel García Márquez e que mais pessoas tenham interesse em abrir um livro do célebre escritor. “Gabo já conseguiu se conectar com pessoas comuns. Mais de 50 milhões de seus livros foram vendidos. Eu espero que o filme sirva para descobrir mais de suas obras-primas”.
Confira outras publicações na EBC sobre Gabriel García Márquez:
– Mia Couto diz que obra de Gabo vai durar para sempre
– Programa Claquete destaca trilha para adaptação de O Amor nos Tempos do Cólera
Assista à homenagem feita pela TV Brasil ao escritor colombiano:
Edição: Alessandra Esteves
Fonte: Luiz Claudio Ferreira, repórter da Agência Brasil – Brasília
Crédito de imagem: © Divulgação Prêmio Nobel