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Amigos relembram Millôr Fernandes em seu centenário de nascimento

© Wikipedia/Cyntia Brito

Se estivesse vivo, o desenhista, humorista, dramaturgo, escritor, poeta, tradutor e jornalista brasileiro Millôr Fernandes estaria completando, nesta quarta-feira (16), seu centenário de nascimento. Millôr Fernandes, nome artístico de Milton Viola Fernandes, nasceu no subúrbio carioca do Méier, em 16 de agosto de 1923, e morreu em 27 de março de 2012, na mesma cidade, ganhando notoriedade por suas colunas de humor gráfico em publicações como Veja, O Pasquim e Jornal do Brasil.

“Millôr é uma das grandes mentes do nosso país. Um artista gráfico fascinante, além de grande escritor. Conheci a arte de Millôr nas publicações do Pasquim e revista Veja. Nunca o conheci pessoalmente. Trabalhei no Globo com a sua companheira, Cora Rónai. As frases e as sátiras que ele escrevia, muito e magistralmente transcrevia para o papel. Nas artes gráficas, a liberdade de traço e cores foi o grande aprendizado que tirei de seu talento. Millôr Fernandes, Jaguar e J.Carlos me ensinaram bastante com seus traços encantadores. Millôr Fernandes, um gênio, uma inteligência rara. Eu o vejo e entendo assim”. Essa é a lembrança que o cartunista, ilustrador e designer Claudio Duarte disse ter de Millôr Fernandes, em depoimento à Agência Brasil.

O também cartunista Carlos Amorim trabalhou no jornal O Pasquim de 1984 a 1992, mas não chegou a privar da companhia de Millôr, que deixou o jornal anos antes, em 1975, por discordâncias com a equipe. Mas, em entrevista à Agência Brasil, Amorim destacou que “Millôr sempre foi o farol dessa turma toda. Ziraldo pedia a bênção para o Millôr, Jaguar pedia a bênção para Millôr. Depois que ele saiu, lá pelo número 300, foi um divisor de águas”. Segundo Carlos Amorim, Millôr levava o humor a sério. “Tanto é que dizia: jornalismo é oposição. O resto é armazém de secos e molhados”. Segundo lembra Amorim, o Pasquim sofreu muito após a saída dele. “Poderia ter ficado mais tempo, até o seu falecimento”. Afirmou ainda, que toda essa turma que é destaque nos jornais hoje “bebia na fonte do Millor, como Tarso de Castro, Fausto Wolff. Ele era o guru mesmo, de carteirinha”.

Referência

O escritor e imortal da Academia Brasileira de Letras, Geraldo Carneiro, definiu Millôr como um privilégio da cultura brasileira. Em entrevista à Agência Brasil, afirmou que Millôr “analfabetizou a minha geração com as sessões de Pif Paf e Van Gogo na revista O Cruzeiro em que nunca respeitou as normas da semântica e da sintaxe”. Para Carneiro, aquelas sessões era uma referência deliciosa para quem foi criança nos anos de 1950 e 1960.

“Costumo dizer que ele tinha um processador mental inigualável. Suas respostas eram anárquicas e engraçadíssimas. Era uma figura maravilhosa, não só pelo intelecto, mas também pela ética, pela retidão intelectual. Era um dos caras mais bacanas da história do Brasil”. Geraldo Carneiro trabalhou com Millôr Fernandes três vezes, sendo duas para cinema e uma para teatro. Fizeram dois roteiros em parceria, ambos para o cineasta Jom Tob Azulay. “Foi um trabalho delicioso, embora nós discordássemos em tudo na vida cotidiana, concordamos em tudo na hora de trabalhar juntos”. Carneiro adaptou também para o teatro uma tradução que Millôr tinha feito de Shakespeare da peça A Megera Domada. “Trabalhamos juntos três vezes. Foi um prazer imenso trabalhar com ele porque era uma pessoa de uma criatividade e uma capacidade de compreensão de qualquer ideia que fosse lançada. Enfim, era uma figura muito rara por essa capacidade”.

Millôr Fernandes era, contudo, um crítico ferrenho da Academia Brasileira de Letras (ABL). “Ia ficar chateadíssimo ao saber que alguns amigos, como eu e José Paulo Cavalcanti entramos para a ABL. Ia nos tratar com algum desprezo e muito deboche, com certeza. Ele tinha horror de qualquer instituição. Era um iconoclasta perfeito”, concluiu Geraldo Carneiro.

Algumas frases de Millôr se tornaram célebres. Entre elas, selecionamos algumas:

A morte é compulsória, a vida não.

Amor não é coisa para amador.

A vida seria muito melhor se não fosse diária.

O ruim das amizades eternas são os rompimentos definitivos.

Todo homem nasce original e morre plágio.

Livrai-me da justiça, que dos malfeitores me livro eu.

Me arrancam tudo à força e depois me chamam de contribuinte.

Pequena biografia

Por descuido dos pais, Millôr Fernandes acabou registrado quase um ano depois do nascimento, ganhando como data oficial o dia 27 de maio de 1924. No ano seguinte, seu pai Francisco Fernandes morre subitamente, aos 36 anos de idade, deixando sua mãe Maria Viola Fernandes viúva aos 27 anos, com quatro filhos para criar. Em 1934, perde a mãe para o câncer. Millôr e os irmãos são separados. O menino, então com 11 anos, vai morar com a avó em um quarto no fundo do quintal da casa do tio materno Francisco, na Estrada Nova da Pavuna.

Fã de histórias em quadrinhos, copiava quadro por quadro as aventuras de Flash Gordon, de autoria de Alex Raymond. Na opinião do próprio Millôr, essa foi a “maior e mais legítima influência” em sua formação de humorista e escritor. Estimulado pelo tio Antônio, envia um desenho para o periódico carioca O Jornal. O trabalho é aceito e publicado, lhe rendendo 10 mil réis como pagamento.

O dia 15 de março de 1938 marcou o início de sua profissão como jornalista; foi quando passou a trabalhar na revista O Cruzeiro. Para fortalecer os conhecimentos para sua carreira, matriculou-se no Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro, onde estudou entre 1938 e 1942. Aos 17 anos, adotou o nome artístico Millôr Fernandes, graças à péssima caligrafia do escrivão que transformava o nome Milton em Millôr.

Na revista A Cigarra, estreou em 1945, sob o pseudônimo Vão Gogo, a seção O Pif-Paf em parceria com o cartunista Péricles. No ano seguinte, lança Eva sem costela — Um livro em defesa do homem, assinando como Adão Júnior. Em 1948, casa-se com Wanda Rubino, com quem teve dois filhos: Ivan e Paula. Em 1949, lança o livro Tempo e Contratempo sob o pseudônimo Emmanuel Vão Gogo. Produz seu primeiro roteiro cinematográfico, “Modelo 19”. Em 1953, estreia sua primeira peça teatral, Uma mulher em três atos, encenada no Teatro Brasileiro de Comédia, em São Paulo.

Em 1957, Millôr expõe seus desenhos e pinturas no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. A partir de 1958, passa a manter sozinho a coluna O pif-paf, cuja página dupla semanal é sempre assinada com o pseudônimo Vão Gogo e suas variações. Isso só deixaria de acontecer em 1962, quando ele assume definitivamente o próprio nome. Em 1960, estreia no Teatro da Praça, no Rio, a peça Um elefante no caos, que rende a Millôr o prêmio de “melhor autor” da Comissão Municipal de Teatro. Em 1964, Millôr dá início à publicação de uma coluna semanal no Diário Popular, de Portugal, em parceria que durou dez anos. No ano seguinte, em parceria com Flávio Rangel, escreve o musical Liberdade liberdade, que estreia no Teatro Opinião, no Rio.

Em 1969, passa de fiel colaborador a uma das principais forças do jornal O Pasquim, quando grande parte do quadro colaboradores foi presa pela ditadura militar. Em 1970, com a redação desfalcada de alguns de seus principais nomes, Millôr e Henfil, com a ajuda de Chico Buarque, Glauber Rocha e Odete Lara, entre outros amigos, se esforçaram para manter em funcionamento o jornal, que não deixou de circular uma só vez. Millôr acaba assumindo a presidência do Pasquim em 1972, reorganiza as finanças do semanário, salvando-o da falência, mas decide sair em 1975, sem apoio da equipe. Em 1976, escreve para Fernanda Montenegro a peça É…, que acabaria se tornando seu maior sucesso teatral, no Teatro Maison de France. Em 1980, Millôr conhece a jornalista Cora Rónai, com quem manteria um relacionamento pelo resto de sua vida. Comemora 50 anos de jornalismo em 1988. Depois de trabalhar para vários jornais e revistas, adere ao computador e lança, em 2000, O Saite Millôr Online, no qual publica novos textos e desenhos e resgata antigos trabalhos. A iniciativa, considerada pioneira na internet brasileira, acaba sendo um grande sucesso.

A ironia e a sátira que usava nos textos para criticar as forças dominantes tornaram-no alvo da censura. Em fevereiro de 2011, no Rio, sofre um acidente vascular cerebral isquêmico (AVC). Com a saúde fragilizada, morre em 27 de março de 2012, aos 88 anos de idade, em seu apartamento em Ipanema, zona sul do Rio. O corpo foi cremado no dia 29, no Cemitério do Caju, zona portuária do Rio de Janeiro.

Com passagem marcante pelos veículos impressos mais importantes do país, Millôr é considerado uma das principais figuras da imprensa brasileira no século 20. Tinha orgulho, por outro lado, de sua atuação desportiva, sendo um dos inventores do frescobol que lançou na praia de Ipanema, com alguns amigos, em 1958. Em 6 de julho de 2012, foi homenageado com o batismo do Largo do Millôr, entre as praias do Diabo e do Arpoador. Em 27 de maio de 2013, ganhou um banco incorporado a um monumento com sua silhueta desenhada por Chico Caruso e batizado de O Pensador de Ipanema.

Um ano depois da morte de Millôr, seu filho Ivan dividiu o acervo deixado pelo pai em três partes. Os mais de 120 livros passaram para a agente literária Lucia Riff; a produção teatral ficou a cargo da Associação Brasileira de Música e Artes (Abramus); enquanto as ilustrações e arquivos pessoais foram transferidos para o Instituto Moreira Salles (IMS).

Amizade

Em texto escrito por Fernanda Montenegro e publicado em seu livro fotobiográfico, em 2018, a atriz homenageia o amigo de longa data:

“Millôr: retrato 3X4
Corajosamente à maneira do próprio.

Millôr, duas sílabas fortes, desconcertantes e gentis, cuja rima pode ser flor e também dor. Os olhos eram de águia, mas, também de pintassilgo, colibri, sabiá.

A expressão verbal adquiria nele a força do substantivo. Por isso, a palavra lhe vinha sempre multidividida em punhais.

Desgarrado de toda e qualquer geração, flutuava acima daquela em que vivia, nessa terra de ninguém, onde é perigoso estar só e, mais perigoso ainda, acompanhado.

Seu ato de viver tinha todas as dúvidas certas. E era um ser mítico para nós que dificilmente e aparentemente lhe conhecíamos a essência. A quem o frequentava regateava o aplauso fácil porque sempre buscou, nos desvãos dessa não troca, a verdade do gesto, da palavra e da finitude.

Esmiuçava os contrastes e aceitava combativamente as vacilações dos que abdicam.

Estoico diante da glória, “que não fica, não eleva, não honra nem consola”, resistiu sempre a toda e qualquer apoteose, embora, com toda justiça, a ambicionasse.

Como lembrança de uma dura infância de menino órfão, no seu medo, jamais se acovardou. Seu rosto guardava recordações que a memória lutava para não esquecer. Acreditava no perigo da ausência, por isso, sempre estava e nunca ficava. Sua opção era ainda estar vivo quando o ultimo respirasse. Não acreditava em Deus, mas, tinha com Ele excessiva intimidade e nessa não fé, transcendendo, conseguiu chegar aos conclusivos 88 ou 89 anos em pouquíssimos segundos, o que lamentamos, lamentamos, lamentamos.

Era visível que Millôr esteve sempre preparado para o Grande Dia. Algumas decisões tomadas: a de morrer, olhando o sol no horizonte. A de sempre brincar de Deus como uma criança. A de absolutamente só crer no destino. E no final, como um cigano ou um poeta, escutar para sempre o silencio na luz absoluta”. Assinado: Fernanda Montenegro.

Edição: Valéria Aguiar

Fonte: Alana Gandra – Repórter da Agência Brasil – Rio de Janeiro
Crédito de imagem: © Wikipedia/Cyntia Brito

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