As ondas de calor são consideradas eventos climáticos extremos, cujos impactos no cotidiano afetam diferentes áreas, em especial a saúde humana. Contudo, ainda há pouco entendimento sobre o potencial desse fenômeno como uma tipologia de desastre climático.
As ondas de calor são caracterizadas, segundo critérios da Organização Mundial Meteorológica (WMO), por temperaturas máximas que ficam, no mínimo, entre 5oC e 7oC graus acima da média por ao menos cinco dias consecutivos.
O aumento da frequência e intensidade de eventos climáticos extremos como esse é uma consequência direta da mudança do clima.
Estudo sobre as mudanças observadas no clima no Brasil concluiu que o número de dias com ondas de calor aumentou oito vezes nos últimos 60 anos. No período histórico, entre 1961 e 1990, eram 7 dias e no período mais recente, entre 2011-2020, passou para 52 dias.
Outro estudo publicado em fevereiro deste ano corrobora esses dados ao apontar que o número de ondas de calor e, particularmente, a intensidade, tem aumentado gradativamente na região central da América do Sul. Em 2023, o Brasil registrou nove ondas de calor e oito em 2024. Em apenas dois meses de 2025, foram registrados três episódios de ondas de calor, segundo o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet).
“O calor é um desastre negligenciado no Brasil e na maior parte das regiões tropicais”, argumenta a pesquisadora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Renata Libonati. “As ondas de calor não têm um impacto visual como os deslizamentos de terra, inundações, que têm uma destruição visível e aparente. Elas deixam de ser percebidas como desastre”, complementa.
Libonati lembra que o senso comum tende a pensar em uma ideia falaciosa de que os habitantes de regiões tropicais estão acostumados ao calor e que, por isso, não faria mal à saúde. “O que a gente precisa é aumentar a informação da sociedade em relação aos perigos de onda de calor”, enfatiza.
Segundo a pesquisadora, a Europa só passou a olhar com cuidado para o tema a partir de 2003, quando cerca de 70 mil pessoas morreram em decorrência de ondas de calor. Desde então, a região tem implementado protocolos de enfrentamento, adaptações das cidades, medidas de prevenção e treinamento, alertas para a população. “O Brasil está muito atrasado com relação a isso, embora as ondas de calor sejam impactantes em termos de mortalidade e internações”, avalia.
Libonati é uma das autoras do estudo que quantificou mortes associadas às ondas de calor entre 2000 e 2018 nas 14 principais regiões metropolitanas do Brasil, que compreende 35% da população do país. Eles analisaram mais de 7 milhões de óbitos e permitiu identificar as principais causas de mortes associadas às altas temperaturas e os grupos mais vulneráveis durante esses eventos.
“Nós quantificamos um total de 48 mil mortes atribuíveis à exposição prolongada ao calor excessivo”, explica Djacinto dos Santos, primeiro autor do artigo. “Entretanto, esses óbitos em excesso não são classificados como mortes relacionadas ao calor. Ninguém morre “de calor”. Em geral, o que observamos são variações significativas nas mortes por doenças cardiovasculares, doenças respiratórias, doenças do aparelho geniturinário, doenças renais, entre outras”, afirma.
O número é 20 vezes maior que o número de mortes associadas a deslizamentos de terra no mesmo período.
Segundo Santos, a base de dados do sistema de saúde, utilizada no estudo, apresenta código internacional de doença (CID) específico para calor excessivo, que é o X30 – Exposição a calor natural excessivo. Contudo, foram identificados apenas 50 óbitos com essa classificação em todo o Brasil. “A grande questão quando falamos das ondas de calor como uma emergência de saúde pública é a subnotificação e a dificuldade de mapear esses impactos”, avalia.
Dentre as consequências das altas temperaturas por vários dias estão óbitos por doenças pré-existentes do sistema cardiovascular e respiratório, por câncer, doenças de pele e tecidos subcutâneos, sistemas nervoso e geniturinário, doenças endócrinas, nutricionais e metabólicas, e transtornos mentais e comportamentais. Há ainda risco aumentado de nascimentos prematuros.
O tempo prolongado de exposição ao sol e ao calor traz riscos de exaustão térmica, insolação, desidratação e queimaduras. Adicionalmente, há uma forte associação entre calor extremo e internações por lesões associadas ao aumento da irritabilidade, levando a acidentes de carro e incremento da violência.
Vulnerabilidade sob a perspectiva socioeconômica
Os pesquisadores observaram no estudo que as mulheres, os idosos, as pessoas pretas e pardas, e aqueles com nível de escolaridade menor que quatro anos foram mais impactados por esses eventos extremos de ondas de calor. “A cor da pele, por exemplo, não tem nenhuma questão fisiológica de ser mais ou menos suscetível ao calor. Na verdade, o que tem são os fatores socioeconômicos que vão influenciar”, afirma Libonati.
Para Djacinto, isso revela que, embora as ondas de calor sejam eventos que atingem todas as regiões do Brasil, os impactos não são equitativos. “Há grupos que são mais impactados e isso está associado principalmente à capacidade de adaptação”, explica.
Entre os fatores de desigualdade estão o acesso a ar-condicionado para conforto térmico, as condições de infraestrutura urbana que são mais precárias e menos arborizadas nas regiões marginalizadas, menor ventilação e maior densidade populacional, entre outros. Trabalhadores que ficam expostos ao ar livre, como na execução de serviços de limpeza urbana, ou que gastam horas no transporte público, pouco adaptado ao calor, também integram o grupo de pessoas mais vulneráveis.
Ilhas de calor urbano
Além das altas temperaturas, os moradores de regiões metropolitanas precisam conviver com as ‘ilhas de calor’, que tem crescido devido à urbanização. “Esse fenômeno é a diferença de temperatura entre a região urbana e a região adjacente rural, ou com floresta ou mais arborizada”, explica a pesquisadora. Segundo ela, embora a interação seja conhecida em outras regiões, ainda não há estudos precisos no Brasil.
Envelhecimento da população
A tendência de envelhecimento populacional, somada à tendência de aumento na frequência, duração e intensidade das ondas de calor, traz um desafio crescente para o sistema de saúde. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2000 a 2023, a proporção de idosos com 60 anos ou mais na população brasileira subiu de 8,7% para 15,6%. A projeção para 2070 indica que cerca de 37,8% dos habitantes do país serão idosos.
“Esse é um dos principais grupos de risco durante eventos de onda de calor”, enfatiza Santos. De acordo com o pesquisador, os idosos, em geral, têm uma maior incidência de doenças pré-existentes e o corpo perde a capacidade de sentir calor. “Há uma maior dificuldade de regular a temperatura do corpo, o que os torna mais vulneráveis a temperaturas extremas”, explica. Como consequência, não se hidratam adequadamente.
Além da conscientização sobre os perigos das ondas de calor, os pesquisadores enfatizam a necessidade de reduzir as emissões de gases de efeito estufa e de desenvolver políticas de adaptação para preparar os sistemas de saúde, a infraestrutura urbana e proteção dos mais vulneráveis. “O problema já está aqui. Então, é urgente desenvolver políticas de adaptação e, sobretudo, alinhadas às políticas de redução das desigualdades no nosso país”, finaliza Santos.